Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Não existe muita concordância a respeito do rigor cronológico das primeiras Santas Casas que foram instaladas no Beasil. É provável que a Irmandade da Misericórdia de Santos tenha sido a pioneira em 1543, fundada por Brás Cubas. A do Rio de Janeiro já estava consolidada em 1582, quando a frota de Diogo Flores Valdes chegou com muitos doentes a bordo.
O destaque político das Santas Casas de Misericórdia da Ásia, África e no Brasil é reconhecido por todos. A Igreja teve importante papel no conjunto para formar, manter e consolidar estas instituições de assistência. Lá, ela estendia o seu poder temporal e aumentav a sua riqueza, sempre acobertada pelo imaginário da caridade cristã.
No Brasil, elas alcançaram dezenas de cidades até o final do século XIX. Sem obedecer a cronologia, foram fundadas em Santos, Salvador, Olinda, Recife, Rio de Janeiro, Ilhéus, Sergipe, Espírito Santo, Itamaracá, Goiania, Igaraçu, João Pessoa, Ouro Preto, São Paulo, Recife, São Luiz do Maranhão, Belém, Campos, São João Del Rei, Diamantina, Fortaleza, Natal, Maceió, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre e Manaus.
A trajetória da disseminação das Santas Casas nas terras conquistadas pelos portugueses é uma pequena parcela da comprovação de como se comportava a máquina administrativa da metrópole.
As Misericórdias, as Câmaras Municipais e os tribunais reproduziam os privilégios e as regras das suas congêneres portuguesas com o empreguinismo dominando as relações políticas. Estas instituições eram sempre dirigidas por elementos do clero ou por pessoas vinculadas ao poder real.
O Relatório da Santa Casa de Misericórdia de Belém, de 24 de fevereiro de 1915 é absolutamente claro a esse respeito. Na sua aprsentação está escrito: ” Temos a satisfação, prezados consócios, de assignalar mais um aniversário da nossa Benemérita instituição de Caridade, que completa hoje 265 anos de existência, pois foi justamente a 24 de fevereiro de 1650 que ela começou a dar os seus primeiros passos na senda da elevada missão que ainda hoje exerce, adotando então, como lei orgânica, o compromisso de 15 de fevereiro de 1619, pelo qual se rgulava o Hospital de Misericórdia de Lisboa, no caráter de Irmandade”.
Todas as Santas Casas já nasceram doentes e moribundas. Elas brotaram do imaginário da caridade cristã, sem levar em consideração que cabe ao Estado o ônus da promoção da saúde do cidadão.
A análise dos registros disponíveis mostra que todas elas sempre foram deficitárias e deficientes. Em nenhum momento houve inteiração dos reais problemas de saúde das populações com os objetivos declarados das Irmandades da Misericórdia. Foi isto sim, como consequência destes objetivos que elas conseguiram, em alguns casos, acumular vasto patrimônio imobiliário, como a do Rio de janeiro. Até hoje ninguém pode ser enterrado naquela cidade sem pagar para a Santa Casa porque a irmandade é a dona de todos os cemitérios.
A situação hospitalar em manaus na segunda metade do século XIX está claramente descrita no relatório do Tenete Coronel José Clarindo de Queiroz, apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de 1880: ” A falta de um estabelecimento de caridade, onde sejam tratados convenientemente os indigentes, principalmente do sexo feminino, que não podem ser admitidas na Enfermaria Militar, onde provisoriamente são recolhidos os do sexo masculino, torna de urgência o prosseguimento das obras do Hospital da Santa Casa e a inauguração pelo menos de uma enermaria para mulheres; no intuito, pis, de atender a essa palpitante necessidade, garante retirar do edifício da Santa Casa a ala esquerda do 11ª batalhão de Infantaria e a Guarda Policial (…). Parecendo-me conveniente a creação de uma irmandade, que, com o auxílio que fosse junto à Província, envarrega-se da administração do estabelecimento, nomeei duas comissões, uma para tratar da sua organização e agenciar donativos para formar o seu patrimônio, e ouotra para formular o compromisso que deve regulá-la (…).”
mais de cem anos depois da comprovação da ineficiência das Santas Casas como instituições para a promoção da saúde coletiva e quatro séculos após o aparecimento da primeira em Lisboa, o presidente da Província do Amazonas Tenente Coronel José Clarindo de Queiroz instalou a Santa Casa de Misericórdia de Manaus no dia 16 de maio de 1880.
A ata de inauguração da Santa Casa de Manaus é também esclarecedora de como continuou sobrevivendo, já no final do século XIX, o mesmo ideário da Misericórdia do século XIV: ” Aos desesseis dias do mês de maio do Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e oitenta, pelas dez horas do dia, noedifício destinado ao Hospital da Caridade, achando-se presentes o Excelentíssimo Senhor Presidente da Província Tenente Coronel José Clarindo de Queiroz, Provedor doutor Feliciano Antônio Benjamin e os mesários, abaixo assinados as Autoridades e pessoas gradas da Capital, depois de celebrada a missa solene pelo muito Rvmo. Vigário Geral da Província Padre Raimundo Amâncio de Miranda, instalou-se definitivamente a Santa Casa de Misericórdia, sob os auspícios de Nossa senhora d’Assunçaõ. Em virtude do que se lavrou a presente ata (…).
A mesa diretora era composta de dezoito pessoas que incluia o Provedor, Tesoureiro-esmoler, Procurador-geral, Mordomos e substitutos.
Apesar desse número de pessoas empenhadas em praticar a caridade cristã, houve denúncia de graves irregularidades administrativas. foi nomeada uma comissão de sindicância no dia 25 de julho de 1889 que comprovou o roubo dos donativos. Nada aconteceu aos competentes da Mesa Diretora.
Nesse mesmo ano de 1889, o Relatório apresentado ao Governador do Estaado do Amazonas, Coronel José Cardoso Ramalho Júnior pelo Secretário de Estado Encarregado dos negócios da Indústria, deixa claro a inviabilidade da Santa Casa já naquela época: ” Foi organizado o projeto do Hospital da Caridade, outra necessidade por deficiência da atual Santa Casa de Misericórdia e por sua defeituosa situação em um local muito acanhado e no centro da cidade.
Por duas vezes abrio-se concorrência pública e por duas vezes foi anulada porque a elevação de preços era de tal ordem, que impossível se tornava aceitar qualquer das propostas.
Para situação d’este hospital forão escolhidos e adquiridos dous quarteirões abrangidos pela rua Mejor Gabriel e Boulevard Amazonas, rua Mocó e Av. Ayrão, compreendendo todas as benfeitorias existentes”.
Os alicerces do Hospital da Caridade foram parcialmente construídos no lugar do atual hospital Universitário getúlio Vargas e definitivamente abandonados meses depois. Algumas semanas atrás, nas escavações para a ampliação da cozinha do Hospital universitário, estes alicerces foram expostos. A obra foi interrompida durante algum tempo para que todos tivessem certeza que não tinham qualquer relação com as estrutura do atual Hospital. os trabalhos já proseguiram e o trator não deixou vestígio do hospital da Caridade.
O relatório da Santa Casa de Manaus de 1923 mostra que o mecanismo de arrecadação era exatamente o mesmo utilizado no século XIV em Portugal, isto é, a concessão de auxílios de caridade e a contínua dificuldade financeira. No item impostos de Caridade diz: “A Santa Casa continua a gozar dos vários auxílios provenientes dos impostos de caridade, encontrando nesta fonte de receita uma contribuição valiosa que muito tem influido na atenuação das suas dificuldades financeiras”.
A última alteração estatutária na Santa Casa de manaus foi feita em 17 de dezembro de 1921 pelo Governador do estado do Amazonas Desembargador César Rego Couotinho através do decreto nº 1124. A essência fundamental continuou exatamente a mesma dos quatro séculos anteriores. No Artigo 1º dos novos Estatutos reza: “A Santa Casa de Misericórdia de Manuas é uma associaçao civil e humanitária que se propõe a exercer a caridade entre os seus membros e prestar seus serviços à humanidade sofredora especialmente aos enfermos pobres; tendo a sua sede nesta capital”.
Com as transformações ocorridas no Brasil nas últimas décadas os problemas das santas Casas tornaram-se agudos. A partir de 1964 com a centralização administrativa presidenciária no recolhimento das contribuições compulsórias e da nova orientação na prestação de serviços não tinha mais espaço para a caridade cristã das Misericórdias. Desta forma, elas foram incorporadas como prestadores de serviço para a previdência Social e pouco a pouco deixaram de fazer os atendimentos dos indigentes.
Alguns anos atrás os amazonenses enguliram goela abaixo uma intensa campanha publicitária com chamada do tipo A santa Casa não pode morrer e Salve a Santa Casa, com o sorteio de carros e outros prêmios. Milhares de cruzados foram arrecadados e a situação não foi modificada em nada. E o que é mais desalentador: nenhuma prestação de contas foi tornada pública.
enquanto o estado brasileiro não consolidar a certeza cristalina de que é dele a obrigação de promover a saúde coletiva, como um direito primário e alienável do cidadão, as Santas Casas continuarão a existir como cicratrizes da frágil associação da prática médica com a caridade cristã.