Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
No intervalo de tempo entre os dois pontos polares da consciência do tempo, o início e o fim da vida, o homem convive com a certeza da doença e da morte.
Nas poucas dezenas de anos em que as pessoas conseguem viver, gastam a terça parte dormindo e o restante, na procura incessante do conforto, da saúde e da justificativa mais coerente da ansiada vida após a morte.
Depois de estabelecer, ao longo de milhares de anos, as relações entre a DP e o prazer, a saúde e a doença e a vida e a morte, a espécie Homo desenvolveu e acumulou, historicamente, conhecimentos objetivando vencer a DP, aumentar o prazer e prolongar o tempo de vida.
A grandeza biológica das MSGs humana sobre a de todas as outras espécies se completa com a idealização do ser-não-tempo (SnT) e a conseqüente esperança do renascimento depois da morte.
Não trata-se, absolutamente, de demonstrar neste ensaio teórico, o real ou o falso do SnT. Ao contrário, estes pressupostos pouco importam. O essencial repousa na concretitude da idéia, transformando-a em realidade vivida e sentida.
A busca da imortalidade atada à vontade dos SnT é tão antiga quanto os registros paleo-antropológicos que chegaram dos nossos ancestrais mais distantes. Pode ter sido a responsável pelo aparecimento da especialização social que deu origem a procura sistematizada do conforto físico e da saúde e também forneceu as bases teóricas da prática médica como nós a entendemos hoje, isto é, onde predomina a suposição de que a cura está, intrinsecamente, dependente da vontade de um ou mais SnT dominantes em determinado grupo social.
Se a estrutura básica da sobrevivência de todas as espécies e, em especial, da Homo, está contida na rejeição ao sofrimento e a certeza da existência do SnT ou de qualquer outra imagem simbólica que o substitua, como a do líder carismático, oferece um caminho na busca do prazer, não há porque duvidar de que as complicadas relações com os SnT estejam contidas nas mesmas funções social e genética: fugir da dor.
A crença no ser imortal – SnT – gerou a dualidade matéria-espírito para transpor a inexorabilidade da putrefação do corpo desmemoriado.
O SnT de natureza intemporal em si mesmo, como ficção, prolonga até o infinito a vida das pessoas queridas, oferece sentido coerente ao renascimento e serve de elo entre o visível e o invisível, rejeitando a morte.
Por outro lado, o ser-tempo (ST) amarrado à finitude da vida, utilizando o SnT como parte instrumental da fuga permanente da DP, estabeleceu dois nexos concretas como símbolos da garantia da vida, na comunicação explícita com os SnT: o sangue que coagula e a terra cultivável.
Ao invocarem o sangue coagulável que sai do corpo vivo como garantia da vida, traduzem na vida de relação, as MSGs que marcaram as primitivas relações com os outros animais. Ao contrário, o sangue menstrual incoagulável, sempre representou a anti-vida e, por essa razão, sub-entende a impureza.
O gradativo sedentarismo, a partir do Neolítico, estabeleceu outras MSGs às já existentes e ligou a reprodução sexuada à fertilidade da terra.
Os dois artifícios de linguagem que o ST tem utilizado para comunicar-se com os SnT, o sangue e a terra, servem como pontos de apoio para superar o medo da morte e da doença, admirar o intocável pelas mãos, especular o invisível, acumular e reproduzir os saberes empurrando as próprias fronteiras do conhecimento.
Como o pensamento está, sem dúvida alguma, dependente do social e da genética, os homens e as mulheres têm grande dificuldade para articular a linguagem fora do conhecimento patrocinado pelas MSGs. Deste modo, os SnT (deuses, duendes, demônios, almas, espíritos), mesmo recheados de variações, são vistos e sentidos com cabeças, braços e pernas.
As evidências apontam para supor que os SnT foram formados à semelhança do corpos visíveis dos ST, desta forma, dotados de comunicação, movimento, pureza e impurezas, ordem e desordem.
É impossível imaginar a existência do ST fora do padrões sociais e genéticos. Os ST estão há muito, muito tempo, atados ao conjunto gregário, augurando o ideal deslocado, pela força da ficção, para o SnT. É nesta interação que permanecem amando e sofrendo, ligando a reprodução sexuada à fertilidade da terra, olhando e admirando o desconhecido, dando nomes à natureza visível, especulando o invisível, acumulando e reproduzindo os saberes.
O cuidado com a saúde e a consciência dos limites da cura podem ter começado em qualquer ponto da escala genealógica e certamente se iniciou na procura do conforto físico. A retirada de espinhos e parasitas da pele em forma individual ou coletivamente com a ajuda de outros membros da comunidade foi a primeira forma de assistência prestada nos nossos ancestrais. Esta assimilação da conduta social foi fundamental para o desenvolvimento e sobrevivência da espécie.
Os nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, com 97% de semelhança genética, são capazes de se tratarem mutuamente lambendo pequenas feridas da pele, retirando parasitas e espinhos que penetram acidentalmente no corpo. Não se trata de simples catação. É indício de verdadeira assistência à saúde, porque envolve atividade consciente e dirigida a um determinado ponto onde está ocorrendo desconforto físico.
A partir da consciência da temporalidade inexorável no ST, reveladora da impotência frente a ocorrência das doenças que levavam à morte, multiplicaram-se as relações-médico-míticas20 (RMM). O ponto de convergência desse caminho que moldou o pensamento criativo do homem como artifícios para fugir do sofrimento imposto nos limites da cura, foi o fantástico número dos SnT com poderes de curar e ressuscitar que a História tem registrado.
Desta forma, sob o ponto de vista histórico, é impossível dissociar a Medicina dos SnT e das RMM.
As milhares de deidades, espalhadas nos quatro cantos do mundo, foram substituídas, nos países cristianizados, pelos santos que operam milagres capazes de modificar a relação do SnT com a dor, o prazer, a vida e a morte, a saúde e a doença.
Essas figuras humanas e míticas continuam carre-gando com elas uma capacidade intrínseca capaz de ressuscitar certos mortos e a cura de alguns doentes. As doenças escolhidas foram sempre as que determinavam impacto nas relações sociais. Já foram lepra, a loucura, a sífilis e a tuberculose. No momento, é a AIDS e os canceres.
Nas intrincadas relações que o homem desenvolveu com os medos da dor e da morte prematura, sempre as fez porque desconhecia a etiologia e o tratamento para evitar muitas dores e muitas mortes. A impotência humana ameni-zou na transcendência dos SnT a rejeição ao desconhe-cido temeroso.
O processo evolutivo ao fixar nas MSGs a busca das divindades como um dos mecanismo de fuga da dor, impôs a grandeza biológica da espécie Homo sobre todas as outras. Com este objetivo e sobre ele, recusando a insegurança vinda com a interpretação das múltiplas formas, o ST transferiu o socialmente impossível para a unicidade do SnT antropomórfico, com poder sobre-humano capaz de resolver todas as aflições da sobrevivência .
A dificuldade, quase intransponível, de se alcançar mais explicações fora da frieza dos registros desenterrados, reside no fato de que as crenças e as idéias não são fossilizáveis. Quando a arqueologia escava um túmulo e junto com a paleontologia começa a estudar o esqueleto e os utensílios encontrados, farão importantes conclusões de muitos aspectos relevantes que ajudarão a compreender o grupo social do morto, porém a maior parte dos valores e pensamentos dele continuarão perdidos em mar de conjecturas. Essas dificuldades são proporcionalmente maiores na medida que recuamos no tempo.
O processo de consolidação das MSGs passou pela conquista do fogo e das consciências do tempo finito, ligadas ao ST, e pelo êxtase do Sol e do tempo infinito, unidos ao SnT, e assinalaram a separação definitiva dos nossos ancestrais dos seus antecessores
A mais antiga comprovação da utilização do fogo data de mais ou menos 600.000 anos. O uso racional do fogo aliado com a busca pelo conforto físico também contribuíram decisivamente para a sobrevivência dos nossos ancestrais. O calor, vindo do sol ou do fogo cultivado, está profundamente marcado nas MSGs como sinônimo de vida e prazer.
A associação simbólica do Sol como o mais importante SnT é tão antiga quanto que se perde no tempo.
Existem muitos indicativos sugerindo o Sol ou o elemento simbólico solar como o principal SnT desde épocas imemoriais. Os saberes historicamente acumulado evidenciaram, muito cedo, a importância da presença desse astro no ritmo da vida e da morte.
A linguagem, de modo semelhante, também orienta na mesma direção: a palavra deus deriva da raiz divv, que em sânscrito significa o luminoso.
Da raiz divv, derivam quase todos os nomes dos SnT dos povos europeus: deus grego, diva lituano, dia irlandês, dieu francês, dio italiano, dios espanhol e outros.
A mitologia abriga outros indícios da estreita participação do Sol como o SnT fundamental. O mito hindu da Trindade composto de Savistri, Agni e Vayú identifica, respectivamente, o Sol, o fogo e o ar. O ofertório cerimonial do pão e do vinho faz-se ao fogo sagrado, unindo o fogo como sacrificador e sacrificado numa só entidade. Os oferente e os fiéis recebiam as dádivas da vida, o pão e o vinho, como instrumentos de Agni.
A interligação entre os três elementos simbólicos é singular na medida em que um dos ritos védicos, permanece celebrando o nascimento de Agni no solstício do inverno, em torno de 15 de dezembro.
Chrisna, Mitra, Oro, Apolo e Adonis estão entre os SnT redentores que nasceram no solstício do inverno, em torno de 25 de dezembro, quando o Sol renasce no horizonte.
Existem muitos registros históricos que identificam Mitra como imagem simbólica do Sol. No primeiro século, em Roma, uma grande parte da população e do núcleo de poder adoravam Mitra. Só assim é possível explicar a inscrição latina Deo Soli invicto Mithrac mancando muitos aspectos da vida social romana.
A presença de Mitra era feita por meio de um disco solar rodeando a cabeça de determinado personagem. Talvez tenha sido umas das razões pela qual, em determinadas épocas da cristianização da Europa, os teólogos e padres firmaram um esforço concentrado para combater Mitra e substituí-lo pelo símbolos cristãos. Contudo, restaram resíduos muito fortes que continuam apontando para os resíduos do sagrado em torno do Sol21, atados às MSGs, na organização do cristianismo:
- O Deus nascido de uma virgem no solstício do inverno e ressuscitado na Páscoa, equinócio da Primavera;
- O cortejo dos doze apóstolos está consoante com as religiões heliostáticas. Os egípcios, os gregos e os persas e os romanos possuíam doze grandes deuses;
- A defesa de Tertuliano aos cristãos acusados de cultuarem o Sol;
- O primeiro dia da semana, o domingo, é em homenagem ao Sol;
- A data da comemoração da Páscoa varia com o calendário solar.
Por ser intocável e inalcançável, mas ao mesmo tempo indispensável à vida, a identificação do Sol como o SnT, representou durante milhares de anos a principal alternativa para fugir da dor. Deste modo, tocou o genoma e estabeleceu nova seqüência específica nas MSGs.
O passo seguinte, ocorrido num tempo perdido na herança filogenética, foi a mudança na forma e na função do sistema nervoso para responder por meio do novo padrão identificador do Sol como SnT. Os novos circuitos específicos, na rede neurônica do neocórtex, passaram a reagir favorável à invocação do SnT Sol, propiciando ao sistema neuro-endócrino liberar, imediatamente, várias substâncias (semelhantes à morfina e ao diazepan) , na corrente sanguínea, que protegem o ST do medo e da angústia excessivos.
O processo resultante da presença dessa substâncias tranquilizadoras determina a sensação de bem-estar e o aumento da defesa autoimune, interferindo de tal forma consistente na sobrevivência, que fornecem a autenticidade indispensável para o SnT.
Nessa altura da composição da MSGs, nenhuma im-portância existe na antiga querela se o SnT criou o ST ou vice-versa. O SnT é real e vivido no cotidiano como um indispensável recurso da sobrevivência.
É indispensável assinalar que a idéia que materializa a presença simbólica do Snt, em todas as crenças, está tão fortemente atada às MSGs que o concretismo independe de qualquer juízo de valor.
Os SnT são verdadeiros, oniscientes e onipresentes em si mesmos. Carregam consigo a expressão máxima do poder sobre as pessoas e as coisas. Por esses motivos, os SnT podem suportar interpretação ambígua. Ou são usados, em determinada cultura, como instrumentos de luta contra à dor ou, em outras, como meios de transcender o sofrimento para perpetuar o desconforto.
A imaginável vida depois da morte analisada comoo mais forte instrumento para aproximar o frágil ST ao todo poderoso SnT, tem acompanhado o homem na sua busca para prolongar ao máximo a memória da vida. Possivelmen-te, esta fantástica busca começou com a idéia religiosa arcaica de que é possível, ao animal, renascer a partir dos ossos descarnados pelo sepultamento.
Neste sentido é conhecida a citação do Antigo Testamento:
Ezequiel, 37:1-8 – ”A mão do Senhor veio sobre mim e me conduziu para fora do espírito de Iahweh e me pousou no meio de um vale que estava cheio de ossos. E aí fez com que eu me movesse em torno deles de todos os lados. O ossos eram abundantes na superfície do vale e estavam muito secos. Então me disse: Filho do homem, porventura tornarão a viver estes ossos? Ao que respondi: Senhor Iahweh, tu o sabes. Então me disse: profetiza a respeito destes ossos e disse-lhes: Ossos secos ouvi a palavra de Iahweh. Assim fala o Senhor Iahweh a estes ossos: Eis aí vou fazer com que sejais penetrado pelo espírito e vivereis. Cobrir-vos-ei de tendões, farei com que sejais cobertos de carne e vos revestirei de pele. Porei em vós o meu espírito e vivereis. Então sabereis que eu sou Iahweh.”
A preocupação com os ossos e a certeza da decom-posição do corpo após a morte influenciaram decisivamente no comportamento do homem em relação ao processo do sepultamento ritualístico.
Os documentos arqueológicos mais antigos e confiáveis desse estudo são as ossadas. O início do sepultamento ritualístico data entre 70.000 e 50.000 anos. Em esqueletos e restos de ossos deste período, foram encontradas a ocra vermelha (argila colorida pelo óxido de ferro com várias tonalidades pardacentas), que substituiu o ritual do sangue como símbolo da vida, sugerindo a crença, já naquela época, de que a existência de nova vida após a morte era considerada não só possível , mas alcançável através de práticas coletivas que envolviam o tipo de inumação das pessoas.
Somente a esperança da imortalidade pode justificar a preocupação que acompanha o ST, desde a sua origem, no ritual do enterro das pessoas amadas.
É difícil aceitar essa parte vital das relações humanas como exclusivamente social ou, simploriamente, ligada à reprodução das imagens oníricas.
Entre os sepultamentos ritualísticos, datando entre 70.000 e 50.000 anos, melhores estudados, constam:
- No sítio arqueológico Le Moustier, na França, um esqueleto de adolescente do sexo masculino, girado sobre o seu lado direito como se estivesse dormindo, com o crânio repousando sobre pilha de sílex servindo de travesseiro e tendo ao lado um machado de pedra cuidadosamente esculpido próximo a vários ossos de gado selvagem, sugerindo que foi enterrado com grande quantidade de carne para servir de alimentação na sua nova vida após a morte;
- Em Teshid Tash, na Ásia Central, a ossada de criança jazia sobre os ossos de uma rena cujos chifres formavam espécie de coroa ao redor da cabeça da morta;
- Na caverna de Shanider, no monte Zagros, no Iraque, o esqueleto de um homem adulto sobre uma enorme quantidade de pólen fossilizado de flores de diferentes espécies vegetais. A análise desse pólen mostrou tratar-se de plantas medicinais, ainda hoje utilizadas, pelos habitantes daquela região, no tratamento de diversas doenças. É provável que o homem enterrado tivesse sidoo curador do grupo social e as plantas colocadas no túmulo para que ele continuasse o seu trabalho específico na outra vida após a morte;
- Na gruta Chapelle-aux-Saints, na França, foi encontrado o esqueleto do homem adulto acompanhado de vários utensílios de sílex com pedaços de ocra vermelha.
A ação humana de empurrar os limites da cura, desde muito tempo, por meio das MSgs acionando os circuitos cerebrais identificadores dos SnT, tem sido o sustentáculo social da busca explicativa do sentido da vida e da morte, da saúde e da doença.
Os SnT e as suas imagens simbólicas, estruturados nas MSGs ao longo do processo de humanização, como um dos instrumentos de sobrevivência, são tão concretos quanto qualquer outra parte do mundo das idéias.