Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
” Uma coisa nos acontecia que muito nos maravilha a princípio e foi que quase todos os que batizamos, caíram doentes, quais do ventre, quais dos olhos, quais de apostema; e tiveram ocasião os seus feiticeiros de dizer que lhes dávamos a doença com a água do batismo e, com a doutrina, a morte” Padre Manuel da Nóbrega. (Brta Ribeiro. O Índio na História do Brasil, São Paulo, Global, 1984, p.29).
O processo de ocupação e conquista do Brasil pelos portugueses introduziu de forma brutal, com a ajuda da Igreja Católica, o confronto de uma nova ordem com as culturas pré-existentes.
A luta iniciada pelos invasores contra a população nativa foi feita simultaneamente através da destruição do universo mítico pela cruz seguida da morte pela espada e pela doença trazida pelo europeu.
os primeiros índios que sofreram esta ação conjugada foram os tupis, chamados pelos brancos de tupinambás.
O grupo étinico tupinambá era formado por várias tribos pertencentes ao mesmo tronco linguístico. Tinham algumaas características sócio-culturais comuns. Incluiam o Tamóio, Tomiminó, Tupiniquim, Caeté Tabajara, Potiguara e Guajajara. Ocupavam a extensa faixa litorânea que ia do Pará ao Rio Grande do Sul.
Metraux (1) os situa com maior precisão: “os tupinambás propriamente ditos eram aquelea localizados na baía da Guanabara, no treci entre Camari e o Rio Real, no baixo Paraguaçu, nas margens do São Francisco, nas costas do Maranhão (acima da serra de Ipiapaba), nas praias do pará (do Gurupi ao Guaporá) e na ilha de Tupinambarana que atingiram já na época da colonização.”
Dos povos que o português encontrou em 1500, conseguiram sobreviver alguns grupos em números muito pouco significativo e completamente desculturados. Ainda podemos ver os Potiguar e Pataxó na Paraíba e Bahia; os Tupinikin no Espírito Santo, os Guarani mo litoral paulista e os Kaingang no Sul. São os Cariboca, Tapanhuma, Mameluco e Cuaipura.
A formação linguística do tupi sofreu enormes variações desdo o século XIV. É possível, para melhor compreensão, dividí-la em três fases distintas: o tupi falado entre os índios e os primeiros viajantes dos séculos XVI e XVII (Anchieta, lery Thevet e Staden), o tupi do século XVIII (dicionário Português-Brasileiro do Frei onofre) e o neo-tupi falado pelos descendentes aculturados no Amazonas de hoje (2).
Devido a extensçaõ do tema e as dificuldades do acesso âs informações, tentaremos localizar os principais objetivos a serem alcançados neste e nos próximos ensaios:
1 – Fazer a análise crítica do papel social do pajé tupinambá baseado nos registros disponíveis dos cronistas e viajantes que estiveram no Brasil entre os séculos XVI e XVIII.
2 – Estabelecer a relação saúde.doença na sociedade tupipnambá.
3 – Determinar em qual medida a prática médico-mítica do pajé tupinambá e dos seus sucessores nos processos migratórios pode ter deixado vestígios na medicina popular.
É provável que os brancos tivessem se interessado, logo nos primeiros contatos, em conhecer as razões pelas quais os tupis tinham tanta saúde e não sofriam das doenças conhecidas e temidas naquela época na Europa.
De qualquer forma, a preocupação que o homem sempre teve em evitar a doença se confunde com a própria natureza humana. podemos agrupar estas mtivações do europeu em conhecer a vida saudável dos índios em três fatores prováveis:
1 – os aspectos exóticos e eficazes que viram os indígenas e o pajé aplicrem no tratamento das feridas de guerra.
2 – Aproveitamento dos métodos aprendidos para tratar as suas próprias doenças, já que não tinham qualquer outra alternativa disponível.
3 – A associação feita entre as funções do pajé e a do médico europeu.
4 – a certeza de que o poder que o pajé concentrava deveria ser destruído para que a dominação se efetivasse na substituição por uma nova ordem sócio-cultural.
estas suposições estão claras no depoimento do médico holandês guilherme Piso, vindo na comitiva do Conde de Nassau : ” De sorte que daqui se pode ver a uniformidade com que os povos, embora ignorantes e de nenhuma letra, exercem a medicina conosco. Conservam tão arraigados os preceitos de cura transmitidos tradicionalmenmte de maõ em mão, o que hão de sofrer antes a morte do que abandonar as suas opiniões nesta matéria. Lembro-me de que os bárbaros nos acampamentos, por meio do gomas frescas, sucos e bálsamos, livraram do ferro e do fogo e restabeleceram com êxito os membros dos soldados feridos por balas de espingardas, que estavam para ser amputados pelos cirurgiões europeus, lusitanos e batavos. Sou ilegalmente testemunha ocular de que nos hospitais foram por eles curadas, só com suco de tabaco, as úlceras rebeldes e as gangrenas” (3).
A leitura das fontes primárias mostra que a saúde dos tupis, apesar de ter desfrutado grande interesse no conquiatador, não foi um dos assuntos que eles mais descereveram. Entretanto, é possível tirar algumas informações de como se passava a compreensão da doença atraves das narrativas feitas pelos cronistas e viajantes da antropografia, religião, rituais de renovaçaõ, sacrifício ritual, além do papel social do pajé (4).
Existem questões concretas na análise da validade das fontes que descreveram os tupinambás. Este assunto foi exaustivamente levantado por Florestan Fernandes: ” Quanto a independência das fontes parace-me que autores como Staden, thevet e Gandavo são ralmente independentes. Outras fontes como lery, Gabiel Soares, os Jesuítas (de uma forma geral), Abbeville, Evreux, Salvador, Jaboatão, Vasconcelos, etc. revelam, em um grau variável, a influência de outros informantes. lery, por exemplo, tanto aproveita as fontes de Thevet, quanto conheceu, embora depois de editado o seu livro, a obra de hens Staden, que o impressionou vivamente” (5).
Apesar das dificuldades conceituais que envolvem até hoje a palavra saúde, é possível buscar nos conhecimentos da sociedade tupipnambá alguns aspectos importantes que podem ajudar a alcançar as nossas metas propostas.
É indispensável que partida seja feita no entendimento conceitual de que a saúde da população tupi no Brasil dos séculos XVI e XVII está intimamente contida na globalidade sócio-cultural da sua manifestação enquanto uma relação dos seus membros com a própria comunidade e com o meio.
Deste modo, a discussão teórica do significado do binômio saúde\doença é da maior importância quando associado aos pontos referenciais descritos pelos cronistas. Entre os mais importantes sarão abordados com o objetivo de melhor compreender a vida e a morte dos tupinambás: o pajé, o canibalismo, o sacrifício ritual, o tratamento das doenças, mitos cósmicos e mitos da criação, os esiíritos, e ritos do nascimento, da puberdade e do casamento, cerimônias funerárias e crenças da vida depois da morte, algumas práticas mágicas e a saudação lacrimosa, festas e danças, festa do caium e o mito da terra sem mal.
É com a mesma ração que faremos o esforço para superar o fantástico do imaginário europeu em relaçaõ ao Novo Mundo descrito em vários autores, inclusive More, Montaigne e rosseau, onde o índio balançava entre o “bom selvagem” a “gente barbaríssema e canibal”.
Os primeiros documentos do colonizador que nos deram notícias da vida dos índios tupinambás foram feitos na chegada dos portugueses:
1 – A carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manoel, datada de 1º de maio de 1500, escrita do Porto Seguro da ilha de Vera Cruz.
2 – A carta do bacharel mestre João ao rei D. manoel com amesma data.
3 – A comunicação do piloto anônimo narrando a viagem de ida e volta da frota de Pedro Álvares Cabral.
Na correspondêcia de caminha está claro a admiração pelos aspectos físicos dos índios: A feição dele é serem pardos, um tato avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência (…).
Em relação à qualidade de vida e da terra o mesmo Caminha escreveu com fscinação: “Até agora não podemos saber se há ouro ou prata, ou outra coisa de metal ou ferro; nem lhe vimos. Contudo a terra em si é de muitos bons ares, frescos e temperados como os Entre douro e minho, porque neste tempo d’agora assim achamos como os de lá. As águas são muitasa; infinitas. Em tal maneira e graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se há nela tudo; por causa das águas que tem (…) (6).
O mestre João, bacharel em artes e medicina, cirurgião do rei, foi o narrador do séu austral. Fazia parte do exercício da medicina daquele tempo o conhecimento da astronomia e astrologia. Foi no dia 27 de abril de 1500 que ele conheceu os tupinambás de Porto Seguro. A sua habilidade de cirurgião-sangrador d corte de D. manuel não teve qualquer utilidade. ele limitou-se a montar o grande astrolábio na praia e determinar a latitude de 17º austrais. o mestre joão estava doente com uma grande úlcera na perna e não fez referência da vida dos tupinambás na sua carta a D. Manoel: ” Eu tenho trabalhado o que tenho podido, mas não muito, por causa de uma perna que tenho muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão (…)“. o primeiro médico a pisar as terras brasileiros somente descreveu a sua própria doença e a latitude que mediu com o seu astrolábio (7).
Na retradução para o português ad versão italiana de joão Batista Ramuzio, da obra Navigationi et viagi, escrito em Veneza em 1550 e publicada no Tomo 11 da Coleção de Notícias para a História e Geografia da Nações Ultramarinas, em 1882, está mais uma vez registrada, pela pena do piloto anônimo, a vida saudável que os tupis desfrutavam quando os brancos chegaram “O nosso capitão-mor mandou deitar fora hum batel, para ver que povos eram aqueles, e os que nelle forão acharão huma gente parda, bem disposta com cabelos compridos (…) Estivemos neste lugar sinco ou seis dias; os homens como, já dissemos são baços e andam nus as suas mulheres andão igualmente nuas, ao bem feitas de corpo e trazem os cabelos compridos”. Este autor anônimo escreveu com muita precisão a abundância de alimentos e as condições gerais de vida daquele povo: ” As suas casaas são de madeira, cobertas de folha e ramos de árvores, com muitas colunas de pão pelo meio e entre elles e as paredes pregão redes de algodão, nas quais pode estar hum homem debaixo de cada uma destas redes fazem um fogo, de modo que n’huma só casa pode haver quarenta ou sincoenta leitos armados a modo de teares (…) A terra é muito abundante de árvores, e de agoas, milho, inhame, e algodão, e não vimos animal algum quadrúpede (…) tem muito bom ar; os homens uzão de rede e são grandes pecadores; o peixe que tirão há diversas qualidades (…) (8).
Nos quatro centos e oitenta e sete anos que se seguiram a estes relatos muita desgraça e desruição atingiu as sociedades tupinambás. Elas foram extintas com tamanha brutalidade que os vestígios foram apagados e é difícil avaliar com exatidão a grandeza do genocídio.
Hoje é possível fazer estimativas aproximadas da população indígena da América nos primeiros decênios de colonização. A escola de Berkeley é uma das pioneiras neste estudo e apresenta números impressionantes do desastre demográfico que os povos americnos foeam submetidos nos séculos XVI e XVII.
Uma sociedade indígena pode ser extinta de dois modos: pela assimilação incosciente dos seus membros de novos valores de outra sociedade dominante e pela morte dos seus membros (9).
É certo que os tupis começaram a ser extintos quando seu mundo mítico foi massacrado pela cruz cristã e pela morte impiedosa de milhares deles pela espada e pelas doenças trazidas da Europa pelos brancos.
A avaliação da enormidade do genocídio dos índios brasileiros pode ser feito a partir dos estudos mais recentes e setoriais de alguns grupos que fotam analisados isoladamente. Foi o que aconteceu com os Kayapó do Araguaia. Os padres dominicanos calcularam a população Kayapó entre seis e oito mil pessoas em 1903. Em 1918, estavam reduzidos a quinhentos e em 1929 eram apenas 27. O que aconteceu com todas as sociedades tupinambás naõ deve ter sido muito diferente do que motivou o dsaparecimento dos Kayapós (10).
Eistem cálculos aceitos de que a atual população indígena no Brasil não ultrapassa os cem m9l indivíduos, distribuídos em cento e quarenta e três grupos tribais. Destes, somente vinte e seis falam línguas do tronco tupi.
Neste período de tempo, pouco menos de quinhentos anos, os tupinambás passaram de
” uma gete parda, vistosa, baça e bem disposta”, provavelmente, com milhões de pessoas saudáveis e possuidoras de um universo sócio-cultural próprio para algumas centenas de caribocas, completamente desculturados, doentes e sem memória que sobrevivem na prostituição e na venda das mesmas quinquilharias que receberam dos portugueses em troca de suas vidas.
LEITURA COMPLEMENTAR
1 – METRAUX. A. A religião dos Tupinambás. São Paulo, Ed. Nacional USP, 1977 p. XVIII.
2 – Para maiores informações ver STRADELLI, E. Vocabulário da língua geral Português-Nheengatu e Nheengatu-Português. São Paulo. Traço, Ed. 1984, p.184.
3 – PISO, Guilherme. História Nacional e Médica da Índia Ocidental. Rio de Janeiro, INL, 1957, p. 75-6.
4 – Este levantamento das fontes primárias foi exaustivamente feito no estudo da guerra na sociedade tupinambá por Fernandes, F. Um balanço crítico da contribuição etnográfica dos cronistas in INvestigação Sociológica, Petrópoles, Vozes, 1975, p. 205-289 e João Pancheco de Oliveira Filho. Elementos para uma sociologia dos viajantes in sociedades indígenas e Indigenismo no Brasil, Rio de Janeiro, Marco Zero\UFRJ 1987, p. 84-148.
5 – Florestan Fernandes, op. cit., p. 214.
6 – História da colonização portuguesa no Brasil. Ediçaõ monumental comemorativa do primeiro centenário da independência do Brasil. Portugal, Litografia nacional, 1923, v. III, p.88.
7 – Idem, idem, op.cit. ,p. 105.
8 – Idem, idem, op.cit., p. 168.
9 – Ver MELATTI, C. Índios no brasil. Brasília, Hucitec, 1987, p. 19-29 e para maiores informações sobre a escola Berkeley em relação à América espanhola ver POMER; L. História da América hispano-indígena. São Paulo, Global, 1983, p. 153-5.
10 – Outros estudos domográficos foram descritos por RIBEIRO, B. Quantos seriam os índios das Américas? Rio de Janeiro. Ciência Hoje, mai-jun, 1983, p. 54-6