ABORTO COMO MÉTODO ANTICONCEPCIONAL

João Bosco Botelho

Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

                        É do conheci­mento público o grande número de grávidas, especialmente, jovens morando nas periferias urbanas, que procuram as mater­nidades públicas em trabalho de aborto incompleto.  A maioria é consequência do uso de misoprostol ou manuseio da cavidade uterina com instrumentos contaminados.

                        Já chegam aos hospitais com hemorragia e infecção, algumas em risco de vida.  Quando inquiridas, negam a intenção abortiva pelo medo das represálias.

                        Para compreender o problema de tamanha gravidade é necessário refletir, sem julgamentos e preconceitos.

                        É possível começar perguntando: o que se mostra tão sedutor capaz de impulsionar à atitude que pode causar morte?

                        Análises realizas em países onde a atenção básica à saúde é competente mostram que os indicadores socioeconômicos não são os únicos responsáveis.

Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica, controlada pelo poder laico, o Código de Hamurabi, do século XVII a.C., e o Código de Esnuna, em torno do ano 1825 a.C., não fazem referência ao assunto.

                        O aborto, como método anticoncepcional, sob a permissão de autoridades ou realizado ao arrepio das leis, continua sendo questão complexa, contudo, com fontes confiáveis desde o escravismo greco-romano.

                        Os registros mostram que pouco importava à mulher daquelas épocas, o momento propício para se desembaraçarem de criança indesejada. Da mesma forma, o univer­so mítico do politeísmo, no Oriente e Ocidente, não empunhava restrição.

                        A interrupção intencional da gravidez não é citada nos papiros médicos. Todavia, no papiro de Ebers, existe método para tratar as hemorragias uterinas, sem especificar se era ou não consequência do aborto.  

                        É interessante assinalar que tanto o Antigo Testamento (AT) quanto o Novo Testamento (NT), contendo inúmeras referências sobre cuidados à saúde e organização familiar, não citam a prática abortiva. É como se esse acontecimento, que deveria acontecer, não tivesse importância à coesão social.  A Bíblia não condena nem aprova ao aborto como método anticoncepcional.  

                        A leitura do Juramento de Hipócrates mostra, no primeiro momento, a clara tendência antiabor­tiva dos médicos gregos da ilha de Cós: ” …Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provo­car aborto”.

                        O padrão ético desse documento surgiu para ordenar os conhecimentos médico‑sociais acumulados pelas Escolas de Knido e Cós, na Grécia antiga, entre os séculos V e IV a.C.

                        Mesmo não existindo dúvida da autenticidade da mensagem hipocrática, é perfeitamente coerente o raciocínio de que pode não ter sido somente a conduta do médico o motivo principal.

                        Não é nenhum absurdo pensar que a autoproteção do grupo, oriundo das duas escolas, tivesse sido o imperativo maior para distingui-los dos curadores populares, detentores de conhecimentos considerados perigosos e não recomendáveis à parte domi­nante da sociedade grega.

                        É possível que a indução do aborto pelos curadores populares, rejeitados pela mentalidade platônico‑hipocrática em ascensão, estaria entre as que provocavam a morte da paciente pela hemorragia e infecção, como todas as práticas que determinavam a morte do doente, eram enfaticamente rejeitadas pelos médicos das Escolas de Knido e Cós  

                        Essa abordagem audaciosa é reforçada pela certeza de que havia   indulgência, entre os autores reconhecidos da antiguidade clássica, para a pratica do aborto, perceptível em Aristóteles (Política, VII, 4), aconselhando a interrupção da gravidez frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida.

                        Esse marcante impedimento ao aborto como prática anticoncepcional, chegou ao cristianismo dos primeiros tempos.  A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida”.

                        Existe a possibilidade de que pode ter sido escrito por religiosos egípcios monoteístas, com ideário semelhante aos dos cristãos.  

                        Não é aceitável supor que as complexas recomendações contidas no Didaqué, divididas em preceitos ético‑morais e normas de celebrações, não tenham sido elaboradas como proposta para modificar o cotidiano de parcela organi­zada daquela população.  

                        Essas regras também influenciaram o filósofo cristão Tertuliano, do século II. Nos seus escritos abandonou a antiga abertura aristotélica e adotou a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.  A querela tertuliana não foi suficiente para resolver as diferenças entre os fetos animados e inanimados levantada por Aristóteles.  Apesar do Concílio de Elvira, no ano 305, ter ameaçado de excomunhão todas as mulheres que abortassem após adultério, essa questão apaixonou intelectuais do século IV.

                        Mesmo com o freio imposto pela moral cristã, a tradição permissa abortiva também dominou o cotidiano no século IV.

                        O pensamento dos doutores da igreja , em especial, São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algasia, argumentou que “os sêmens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos. O suicídio foi incluído possivelmente, porque a morte, durante a gestação, não era acontecimento incomum.

                        De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) mantém a separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, porque a LEI não prevê que o ato seja                 con­siderado homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.”

                        Em algumas partes do medievo europeu, as elaborações teóricas não saíram dos muros das abadias. O reforço para melhorar o controle social, entre os séculos VI e VII, veio com o sincretismo entre o cristianismo e as crenças do politeísmo romano.

                        Surgiram as festas cristianizadas para saudar a vida concebida pela vontade de Deus. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século IV, iniciando os atributos de sacralidade à todas as concepções. Foi seguida da Festa da Natividade, celebrando a imaculada Conceição de Maria, no dia 8 de dezembro, e a da Anunciação, ou “festa da concepção de Cristo”, respectivamente nos séculos VI e VII.

                        Essas comemorações contribuíram para impor simbolo­gia sagrada à gestação. Assim, podem ter iniciado complexo processo de punição para as quem ousasse interromper o ato de Deus: a gravidez.  

                        As dúvidas sobre a data correta para o início da anima­ção do feto atravessaram os séculos e chegaram a Santo Tomás (12225 – 1274). O tomismo sustentou claramente que a animação não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio.

                        A força da tradição e o tomismo influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa Gregório XIV, apoiado no argumen­to de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto    em       qual­quer idade fetal.

                        O Direito Canônico, no período da industrialização, no século XIX, forçou o retrocesso da Igreja aos rigores do cristianismo primiti­vo do Didaqué, possivelmente entre dois componentes inesperáveis: teológico e político.

                        O primeiro, promovido pelo Papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado. O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão de obra interferindo nos preços, já que a prática de aborto como método anticoncepcional alcançava muito mais as mulheres pobres, das periferias urbanas.

            O famoso discurso papal, dirigido aos obstetras, em 1951, foi enfático ao atribuir vida intrauterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do inocente: “…Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus … Não há nenhum homem, nenhuma autoridade, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, canônica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberada­mente de uma vida humana inocente … visando sua destruição”.

                        O documento conciliar Gaudium e Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis”.

                        Algumas passagens do Antigo Testamento (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do Novo Testamento (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18) valorizando a vida situando Deus como o único Senhor da vida e da morte, foram utilizados pelos teólogos Da Igreja, para construir as restrições ao aborto como método anticoncepcional.  

                        Após quase dois mil anos de limitações impostas pela Igreja, a estima­tiva do número de abortos provocados por ano no mundo ultrapas­sou, em 1989, 40 milhões. Dez por cento desse total, 4 milhões, foram feitos no Brasil, causando a morte de trezentas mil mulheres.

                        Nas ruas dos grandes centros urbanos brasileiros já perambulam mais de 500 mil menores prostitutas (Folha de São Paulo, 25. 10. 90). Assim não podemos estranhar a denúncia do ­Conse­lho Nacional dos Direitos da Mulher (Jornal do Brasil, 08. 03. 91) de que mais da metade dos abordos registrados são praticados em condições precárias de higiene e entre meninas de 14 a 19 anos de idade.

                        A Organização Mundial de Saúde publicou que o Brasil já tem maior número de abortos do que de nascimentos (Jornal do Brasil, 07. 03. 89).

                        Os estudos da OMS e de outras entidades de direitos humanos, mostram a mortalidade e morbidade atenuadas com a melhor assistência do Estado.

                        Apesar de a evidência histórica de a proibição teológica pouco influen­ciou as autoridades eclesiásticas brasileiras alinhadas incondicionais ao Vaticano, continuam ignorando a tragédia social das milhares de mulheres que morrem em consequência do abortamento clandestino e continuam mantendo contingente articulado para sustentar a proibição absoluta, semelhante àquela do cristianismo primitivo.        

                        Particularmente importante na opinião pública é espaço ocupado pelo clero conservador, representado pelos cardeais Dom Eugênio de Araújo   Sales (In memoriam) Dom Lucas Moreira Neves (In memoriam) e Dom José Freire Falcão (In memoriam).  

                        Dom Eugênio de Araújo   Sales, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, (Jornal do Brasil, 06. 04. 91), fechou questão com inflexibi­lidade irremovível, contestada pelos grandes doutores da Igreja durante mais de mil anos:” A inviolabilidade e o direito à vida, desde a concepção até a morte, são expressões da própria inviolabilidade da pessoa”.   

                        Foi a pressão exercida por essa parte do clero conser­vador que forçou o então governador Leonel Brizola a retirar, em 1985, da Assembleia Legislativa o projeto de lei regulamentando a assistência médica pública ao aborto consequente ao estupro.

                        A tendência pró‑aborto, iniciada na Europa, nos anos setenta, é hoje mundial. Nos últimos quinze anos, pelo menos vinte países modificaram as suas leis.  

                        Na Itália, o mais católico da Europa, a legalização do aborto provocou muito conflito. Só depois de cinco anos de debates no Parlamento, em 1975, e com a ajuda da “frente laica”, reunindo os representantes de todos os partidos políticos, foi aprovada a mudança. O plebiscito, realizado no papado de João Paulo II, mostrou que 70 % dos italianos aprovaram a lei.

                        Baseado nestas reflexões e lendo as notícias  na imprensa sobre o aumento do número de gravidez interrompida voluntariamente, nos países cristãos, é possível concluir que:

– As proibições teológicas, lideradas pelo cristianismo, não ­modi­ficaram, em quase dois mil anos, o comportamento das mulheres quando decididas utilizar o aborto como método anticoncepcio­nal.  

– Nas sociedades com problemas de superpopulação, o estímulo aberto ou disfarçado ao aborto pode ser transformado numa forma de controle populacional utilizada pelo poder político dominante;

– A herança social acumulada não é modificada facilmente pela interdição religiosa.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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