CURANDEIROS E ADIVINHOS: AGENTES DE COESÃO SOCIAL
JOÃO BOSCO BOTELHO, Doutor Honoris Causa, Universidade Toulouse III – Paul Sabatier.
“Aliás, as fronteiras entre adivinhação e medicina são tão vagas que não nos surpreenderá encontrar num tratado médico um prognóstico aventureiro e, num tratado de adivinhação, um diagnóstico médico pertinente” (CARLIER, Jeannie. Adivinhação. Mythos/Logos. Sagrado/Profano. Enciclopédia Einaudi. Portugal. Imprensa Nacional. Casa da Moeda. v. 12. p. 35. 1987).
A história, mesmo quando abordada como pretensa sucessão imparcial de fatos, está repleta de dados confirmando a existência, desde tempos imemoriais, de curadores e adivinhos. A maioria dos registros está construída na polaridade desprezando as relações sociopolíticas.
Entendendo o papel social dos curadores e adivinhos situados em contexto mais amplo, é possível estendê-los também sob o enfoque dinâmico dos conflitos entre grupos, na ocupação dos espaços sociopolíticos, para que seja possível compreendê‑los como agentes de coesão social.
Então, cabe a pergunta: curadores distantes dos processos formadores administrados pelos Estados e adivinhos, têm qualidades especiais ‑ o dom ‑ que os distingam de outras pessoas? (BOTELHO, 1988, p. 113-129).
Essas complexas relações compõem parte do conhecimento historicamente adquirido: o reconhecimento coletivo da existência de homens e mulheres com capacidades especiais, de possível natureza transcendente, para curar e adivinhar, intermediando a vontade das divindades dominantes em determinada cultura.
Permanece sem resposta a indagação: esse dom existiria?
Enquanto não temos outra resposta, continua prevalecendo o sentido bíblico, amplamente difundido entre incontáveis crentes de muitas ideias e crenças religiosa servindo como instrumento de poder à catequese:
Tg, 1, 17: Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das Luzes;
Eclo, 38,1-2: Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes.
Desde os primeiros registros, muitas linguagens guardam solenemente registros desse enorme poder porque é possível identificar intrincada relação de dependência entre essas pessoas especiais, aos olhos e ouvidos coletivos, em diversos segmentos sociais nas comunidades onde atuavam.
Esse nó, relacionado com a capacidade humana em abstrair o pensamento para enfrentar a doença e o futuro, está envolvido no processo da ligação humana com o transcendente através da experiência religiosa com o sagrado (BOTELHO, 2000. p. 93-113).
A maior parte da comunicação religiosa em torno dos curadores e adivinhos está construída por meio da regra binário do prêmio-castigo. A saúde e a bonança os prêmios pelo cumprimento das ordens, a doença e a desgraça, os castigos pelas desobediências. Por esta razão, o aliado ao poder dominador que curasse a doença e previsse os infortúnios, representava a divindade dominante. Ao contrário, quem não reproduzisse o poder, mesmo que sarasse e adivinhasse com a mesma competência, era identificado à divindade do inimigo, sem credibilidade.
Essa constatação ficou clara a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontrados nos sítios arqueológicos assírios e babilônicos, ao esclarecer as palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento com significados semelhantes (Le Goff, 1987, 271).
É também possível evidenciar que os curadores e adivinhos, em muitos contextos históricos, exerceram funções equivalentes na organização social. É por esta razão que os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde os primeiros registros.
É possível pressupor que a posse do dom oferecia mais poder a quem o possuía, colocando‑o em destaque na comunidade, aparecendo nas narrativas intermediários da vontade divina.
A outra possibilidade acontecia quando o poder, nas suas diferentes manifestações de força, tentava impor outras concepções escatológicas, como etapa da luta entre dominador e dominado.
A linguagem do dominador para manter o projeto político de mudança do antigo por outro recente é de fundamental importância porque, de modo transparente, a mensagem de esperança requerida pelos anseios coletivos anteriores à conquista. Só assim será competente para seduzir e minimizar a resistência no povo conquistado.
Nas circunstâncias que seguem o jogo de força entre conquistador e conquistado, a resistência nasce e se manifesta na razão inversa da sedução exercida pelas novas propostas de vida e boa morte ao fazer surgir outros conceitos de salvação pessoal e coletiva.
A relação do poder dominante com as ideias e crenças religiosas é caracterizada pela tendência marcante, sempre que possível, para substituir o conjunto das crenças do povo subjugado. Quando essa alternativa se torna impossível de ser realizada em curto prazo, são impostas as alianças militares e culturais, predominantemente por meio de sincretismo religioso.
Alguns reis citados no Antigo Testamento, como Baal e Astarte (Jz 2, 13), cultuados na Mesopotâmia, foram identificados pelo judaísmo como curadores e adivinhos representantes da divindade inimiga porque não eram alinhados ao monoteísmo.
A História mantém alguns exemplos de tentativas de substituição das crenças e ideias religiosas.
A dura condição de vida imposta aos povos conquistados, pelos monarcas pré‑cristãos, contribuiu ao aparecimento de vários heróis míticos de salvação durante a dominação, sobretudo, o romano na Palestina.
Parte do surgimento do cristianismo pode ser inserido nesse contexto, onde muitos povos, desgastados com as suas antigas crenças, foram buscar na nova mensagem cristã as forças da libertação.
O processo de substituição cultural nunca acontece em linha reta. É efetuado em dois momentos distintos: a desmoralização do antigo e a substituição pelo novo. A complexidade aumenta no embate das forças de pressão e contrapressão dos grupos que digladiam para ocupar os espaços. Todavia, é somente no segundo instante que a conquista se consolida, quando surge o herói mítico de salvação para satisfazer as aspirações coletivas.
A mensagem cristã de libertação modificou a estrutura sociopolítica do Ocidente. Quase dois mil anos depois, continua exercendo sedução irresistível, capaz de penetrar profundamente no sentimento de liberdade e justiça.
De acordo com os Evangelhos, Jesus Cristo veio como o filho de Deus, com poderes de curar e ressuscitar para anunciar a nova mensagem escatológica.
É claro que não podemos deixar de pensar na existência de outras condições sociopolíticas para sedimentar a incrível sedução que acompanhou a mensagem salvífica anunciada pelo cristianismo primitivo. A miséria tinha atingido um patamar insuportável para o povo ouvinte das primeiras mensagens cristãs. A população do Império Romano, no tempo do Imperador Augusto, é calculada em torno de 65 a 70 milhões, somente próximo de quatro milhões, eram cidadãos romanos.
Na Mesopotâmia e nas populações do Crescente Fértil, durante muitas gerações, as oposições foram impiedosamente esmagadas pelo poder dominador. A resistência construiu artifícios de simulação, quase sempre refugiadas em guetos, onde a organização social rígida era imperativa para a sobrevivência do grupo.
As comunidades judias faziam parte desse bizarro mosaico de mentalidades, reproduziram ao longo de três mil anos, as experiências sagradas através de três elementos de coesão social: a fé monoteísta, a sinagoga e o sábado. Esse conjunto, em grande parte oriundo da memória oral, foi transcrito aos livros sagrados (Tora e Talmud) e utilizados como instrumento de organização social.
Aquela tradição vivia a religião de fé monoteísta e a esperança no futuro capaz de modificar o intolerável jugo estrangeiro. A promessa de Deus aos profetas transformou os hebreus no povo do futuro, que desfrutaria da terra prometida farta de leite e mel. Assim o judaísmo rompeu com o tempo cíclico e estabeleceu a crença no tempo final.
É também razoável entender que as ideias e crenças religiosas se manifestam de modo sincrético, sem que se possa estabelecer limites precisos aonde começa certa expressão de religiosidade e termina a outra. O cristianismo primitivo, nascido no seio das massas populares perseguidas pela implacável dominação romana, foi aquecido pelas crenças mais antigas do judaísmo que continuava esperando o herói mítico de salvação (Jo 1,49): “Então Natanael exclamou: Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel?”
Ainda nesse ponto da história, o cristianismo tem sido manifestação religiosa de povos oprimidos, desesperados para minorar os sofrimentos, pleno de sincretismos, onde os curadores e adivinhos de todos os matizes desfrutavam de espaços reconhecidos. Mas, não só, a mudança tornou-se indispensável. Os primeiros padres da cristandade, artífices do processo de substituição do velho pelo novo, deslocaram grande parte da antiga escatologia judaica e passaram com nitidez de uma concepção coletiva para valorizar a confissão a Jesus como única salvação.
Com a passagem de religião dos desprotegidos, começou a utilizar a estratégia política semelhante à do judaísmo, iniciando a perseguição raivosa contra todos curadores e adivinhos não alinhados com o cristianismo (At 16, 16‑18), culminando com o brutal assassinato de milhares de pessoas nas fogueiras de lenha verde acesas pela insanidade coletiva comandada pela Inquisição.
O processo de cristianização abandonou os cuidados coletivos com a saúde, alimentação e higiene recomendados pelos livros sagrados do judaísmo. Como não houve tempo para sedimentar outras regras, a maior parte das populações ficou sem parâmetros para enfrentar as dificuldades resultantes da urbanização desordenada.
Esse conjunto sociopolítico e religioso, em especial o castelo e as catedrais gigantescas concentrando os poderes político e religioso, contribuiu ao agravamento das epidemias que castigaram a Europa, durante parte da Idade Média, em especial a peste negra que matou em torno de cem milhões de pessoas, entre os anos de 1347 e 1351.
No Brasil colonial, a força dos núcleos de resistência à substituição das muitas ideias religiosas e línguas, tanto dos elementos coloniais quanto dos numerosos grupos étnicos indígenas e dos escravizados, imposta pelo Igreja, em diferentes períodos, seguiu as tendências das quatro tradições religiosas, lideradas pelos próprios agentes atuantes simultaneamente como curandeiros e adivinhos, combatidos pelo poder dominador colonial de acordo com os componentes das tensões sociais:
1. Indígena: pajé. Esteio da coesão tribal, apesar de ter sido brutalmente desmoralizado pela sanha colonizadora durante quatro séculos, continua resistindo nos confins das florestas.
2. Africana: pai‑de‑santo, para burlar a fiscalização e evitar os castigos desumanos, recorreram ao sincretismo.
3. Igrejas cristãs: padre.
O padre salesiano Alcionílio Bruzzi Alves da Silva (SILVA, 1977, p. 250), depois de conviver durante mais de duas décadas num povoado da etnia Tukano, no Amazonas, é testemunha viva desta resistência: “…o pajé, representa o mais elevado nível intelectual do povoado indígena, não só, é o zelador pela observância das leis da tribo…Ele é, pois, o maior opositor da assimilação da nossa cultura por parte dos silvícolas”.
A Igreja ao combater sistematicamente os curadores e adivinhos, nascidos das tensões sociais e sem compreendê‑los como agentes de coesão social, não consegue processar linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos nascidos nas contradições, em especial, do subdesenvolvimento, em parte fortalecendo as igrejas neopentecostais e contribuindo ao acelerado esvaziamento das Igrejas.
Do outro lado, as igrejas neopentecostais divulgando mensagens sedutoras promovendo as sessões de curas e catarses ao som dos cânticos de louvor de milhares de fiéis. Com essa estratégia, penetram com maior facilidade na vontade popular e ocupam os espaços sociopolíticos nascidos do desencanto, da insatisfação e miséria.
Os curandeiros e adivinhos tornaram‑se elementos de coesão social ao aperfeiçoarem o trato com o sagrado, resistir às conquistas e impulsionar à liberdade.
REFERÊNCIAS
BOTELHO. João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Scortecci-Plexus ed. 1998. p. 113-129.
______. O deus genético. Manaus. Editora Universidade Federal do Amazonas. 2000. p. 93-113
LE GOFF, Jacques. Pecado. Portugal. Casa da Moeda. Enciclopédia Einaudi 12. 1987. p. 271. SILVA, Alcionílio Bruzzi Alves da. A civilização indígena do Ualpés: observações antropológicas etnográficas e sociológicas. 2 ed. Roma. Libreri