João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier
Existem evidências, reproduzidas em laboratório, de que o estado emocional pode mudar a homeostase (capacidade de o corpo manter-se em equilíbrio com o meio, evitando a doença).
O estudo realizado em conceituada universidade inglesa, mostrou ser necessário mais do que ter o vírus da gripe para que a enfermidade se manifeste. Realizado com quatrocentas e vinte homens e mulheres evidenciou que o estresse determina duas vezes mais possibilidades de a doença acontecer. A distância entre a causa (vírus ou bactéria) e o efeito da presença dos agentes infecciosos no corpo (a doença), está engendrada na complexa malha, pouco entendida do sistema imunológico.
A maior parte das funções que guardam essas defesas inatas e adquiridas permanece imersa em dúvidas.
Como os medos das dores sem controles e da morte continuam muito significativas no cotidiano das pessoas, nos quatro cantos do planeta, é possível pressupor que alcancem também o pesquisador. Essa repulsa seria suficientemente intensa, para interferir nos objetivos do pesquisador?
A transformação tecnológica e da linguagem superficial adaptam-se, continuamente, a esse querer coletivo: multiplicar o prazer, afastar a dor, prolongar os sentidos inatos e adiar a morte. Continuam valendo os determinantes das memórias sociogenéticas*, para preservar o corpo sem mácula, sem doença, à imagem e semelhança da divindade imaginada.
A vontadede desvendar essa complexa malha – doença e doente – fortaleceu a medicina como especialidade e o ato médico interpondo a máquina entre o médico e o doente: raios-X, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas e ultrassonografias aumentaram as possibilidades para ver e entender o escondido atrás da pele.
*A proposta teórica das memórias sociogenéticas, interligando o meio vivido e as emoções sentidas à epigenética capaz de produzir mudanças no genoma, está publicado:
BOTELHO, JB. O deus genético. Manaus. Editora Universidade Federal do Amazonas. 2000. p. 11-146.
Sob essa construção, a proposta do sociólogo Talcott Parsons para consolidar a autoridade do médico tornou-se dominante, na sociedade industrial. O médico assumiu ser sinônimo de agente da proteção pura, evitando a dor e adiando a morte, no mundo laicizado. Por outro lado, contribuiu ao fortalecimento do descrédito dos saberes historicamente acumulados dos curandeiros, benzedoras e parteiras, substituindo-os pela tecnologia médico-hospitalar, inacessíveis à maioria dos que sobrevivem nas periferias urbanas sem água potável e esgoto sanitário.
A estratégia de Parsons, para valorizar o saber universitário, foi reproduzida no Ocidente, sob a perspectiva de metamorfose coerente: o médico é o absoluto responsável pelo corpo sadio e doente. Ao mesmo tempo, diluiu entre as máquinas a responsabilidade da morte.
Mesmo contestados pelas observações corriqueiras, muitos continuam resistindo à idéia da estreita dependência entre o subjetivo-emocional. Nas sessões clínicas, onde se discutem casos médicos de maiores complexidades, estão cada vez mais atados à exclusividade das máquinas, ignorando-se a ligação entre a causa e o efeito: se o paciente tem tuberculose, é lógico encontrar o bacilo de Koch, sem explicar por que os bacilos, iguais na forma microscópica, em algumas pessoas causam doenças no pulmão; nas outras, nos ossos na pele ou no intestino.
Durante uma inesquecível aula prática, há quase meio século, na enfermaria pediátrica, estávamos examinando a criança com diagnóstico de leucemia, quando ela segurou, angustiada, com as mãos pálidas, um pequeno crucifixo metálico e pediu, em lágrimas, o fim da dor. Estava muito assustada. A aparência descarnada inspirava, igualmente, carinho e compaixão. Com a boca tomada pelas feridas e sem um único fio de cabelo, consequências da quimioterapia antineoplásica, a face expressava terror. Todos sabiam que ela não viveria muito tempo. Mesmo assim, o tratamento agressivo era aceito como verdade acabada. Pouco significavao terrível pânico da criança porque as atitudes médicas estavam respaldadas na ciência.
Um dos alunos, impressionado com o desespero estampado nos olhos escavados da pequena doente, perguntou com receio de estar falando tolice: “Professor, por que tanto sofrimento?” Nos segundos seguintes, todos sentiram embaraço indescritível e não houve resposta. Talvez seja possível interpretar aquele silêncio como a alternativa para manter intocável o saber reconhecido. Era a posição cientificamente correta!
Nesse tipo de aprendizagem, não existia a pergunta: os temores e as alegras do doente podem interferir no curso da cura?
A vivência cotidiana profissional demonstra que a medicina, enquanto especialidade social, continua longe de compreender completamente por que e como as mudanças ocorrem no nível da molécula provocando a doença.
É mais grave nos países subdesenvolvidos, onde as instituições de ensino só conseguiram alcançar, ainda com dificuldade, a morfologia celular. Como a expressão morfológica da matéria viva, inclusive a doença, tanto na microscopia quanto na macroscopia é única e jamais se repete, é possível pressupor o quanto é falho esse julgar aceito como indiscutível.
Ainda estamos muito longe de entender em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença, ou, ainda mais desesperador: se realmente existe doença na forma como a compreendemos.
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