João Bosco Botelho
Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier
A humanidade sempre conviveu com a certeza da doença e da morte. A inteligência humana conseguiu elaborar, no espaço sagrado, idéias para justificar a inexorabilidade da agonia do frio, da fome, da doença e da morte. A partir de uma fase, cujo início é impossível de precisar, predominou aquela que projetava a ambicionada felicidade na imaginável vida depois da morte. A epopéia edificada na busca dessa imortalidade representou um dos principais fatores para o aparecimento dos agentes da cura, da benzedeira ao médico, e a materialização da Medicina como especialidade social.
Curar é uma palavra mágica porque interliga o sagrado com o profano. O ato de curar traz na sua essência o poder ou a sensação de vencer o maior de todos os obstáculos da vida: a morte.
Este é o ponto básico da principal resistência humana: vencer a morte inevitável!
O fato está claro na mitologia grega. A data atual de comemoração do dia do médico — 18 de outubro — corresponde à época em que era celebrada a festa do filho de Apolo, Asclépio, o deus da Medicina grega. O estudo da representação social de Asclépio, no panteão grego, é capaz de identificar um ponto comum na relação entre os mundos sagrado e profano: a insubordinação humana à ordem divina quanto a mortalidade dos homens.
O poder da divindade, artisticamente construído, mantendo a primazia sobre a morte, foi revigorado pela gradativa consolidação do cristianismo como religião dominante. O calendário cristão manteve o dia 18 de outubro como o registro festivo para marcar o nascimento de Lucas, o evangelista médico.
A serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristã e formou um dos mais belos sincretismos religiosos da história. A primeira, símbolo da imortalidade embaixo da terra, e a cruz como a representação do inatingível acima da terra, fecham o ciclo mítico pendular entre o desconhecido situado acima da cabeça e abaixo dos pés do homem.
Entretanto, quando o medo da morte nos alcança ou aqueles que nos são amados e os recursos da Medicina são insuficientes para preservar-lhes a vida, como na Grécia antiga, em que os doentes suplicavam pelo milagre de Asclépio, o Ocidente cristianizado se volta à bondosa imagem de Jesus Cristo capaz de curar muito além dos recursos médicos oferecidos.
Ainda estamos angustiantemente longe de compreender os mistérios da vida. Contudo, não é sem razão nem simples coincidência que os médicos comemoram, muitos sem saberem por que, o dia 18 de outubro como marco da resistência à morte inevitável.