João Bosco Botelho Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier
Os poderes laicos e religiosos, em diferentes instâncias, ao longo de quatro mil anos, têm adotado diversas atitudes frente ao aborto como método anticoncepcional, variando entre a ausência de comentários à proibição absoluta.
Nos livros sagrados das culturas politeístas e monoteístas, do primeiro milênio a.C., a interrupção intencional da gravidez, salvo pelo risco de morte materna, causava repulsa.
O AT e o Novo Testamento, mesmo contendo referências específicas sobre a organização familiar não citam uma só vez de modo explícito qualquer tipo de condenação ao aborto como método anticoncepcional. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse qualquer importância. A Bíblia não condena nem aprova a interrupção da gravidez por meio do aborto provocado.
É difícil aceitar que a ausência de citação no AT seria porque as sociedades judias não conheciam essa forma de método anticoncepcional. É mencionada a pena do agressor de mulher grávida, se a brutalidade resultasse em aborto. Contudo, o castigo tem sentido indenizatório.
O 2º Livro de Samuel descreve o drama do rei Davi após engravidar a mulher do general Urias. A gravidez próxima de ser descoberta pelo povo, que acreditava o rei acima do pecado, o aborto não fora aventado. Como opção, o rei conquistador determinou a morte do militar, na frente de combate, para que fosse possível casarem-se sem macular as leis judaicas..
A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral de cristãos dos primeiros tempos, escrito entre os anos 60 e 90 d.C., na Palestina ou Síria, antes da destruição do Templo de Jerusalém: Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida.
Na Grécia do século 4, o juramento de Hipócrates, oferece, num primeiro momento, a tendência antiabortiva da Escola de Cós, onde se localizava o hospital-escola de Epidauro: “…Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provocar aborto…”.
Outra abordagem dos princípios éticos hipocráticos aponta a valorização primordial à vida; logo, a proibição ao aborto e de outras cirurgias se assentava no fato de que as complicações poderiam causar a morte da grávida. Sob esse argumento, a interdição ao aborto provocado, no juramento hipocrático, longe de representar impedimento de natureza moral do ato abortivo em si mesmo, está atada à obrigação fundamental do médico grego para manter a vida da paciente.
O filósofo cristão Tertuliano (190‑197) também adotou a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.
São Jerônimo (331‑420), um dos quatro Doutores da Igreja, sob influência aristotélica, na correspondência à Algásia, argumentou se antepondo à restrição absoluta de Tertuliano: Os sêmens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros.
Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos. Nesse caso, parece que a restrição ao aborto como método anticoncepcional estaria ligada à crítica à infidelidade.
De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) manteve a separação etária dos fetos, igualmente, com clara presença de Aristóteles: Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, a LEI não prevê que o ato seja considerado como homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.
Na Idade Média, a Igreja sincretizou de forma inteligente, cristianizou algumas comemorações oriundas do politeísmo greco-romano, especialmente, as que as populações continuavam celebrando sob proteção de deusas e deuses greco-romanos.
A celebração da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século IV, iniciando os atributos sagrados às concepções, seguida da Natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, e a da Anunciação, ou festa da concepção de Cristo, respectivamente, nos séculos VI e VII. Essas celebrações contribuíram para impor simbologia sagrada à gestação.
A dúvida sobre a data do início da animação do feto, oriunda dos conceitos aristotélicos atravessou os séculos. O magnífico Santo Tomás (1225‑1274) sustentou que não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio. A força da tradição e a moralidade do tomismo para a estrutura dogmática da Igreja influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição.
O papa Gregório XIV, apoiado no argumento de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.
O retorno da Igreja, verificado no século XIX, ao rigor do cristianismo do Didaqué tem dois componentes inseparáveis: um teológico e outro político. O primeiro, promovido no papado de Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado. O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão‑de‑obra, já que historicamente o aborto e suas consequências maléficas alcançam mais as mulheres oriundas dos estratos sociais mais pobres.
No famoso discurso, dirigido às obstetras, em 1951, Pio XI foi enfático ao atribuir vida intrauterina plena antes do nascimento e condenar o aborto como morte de inocente.
O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis.
O problema que essa discussão teórica nada importa às dezenas de milhões de pessoas pobres, moradoras nas favelas de periferias urbanas, no Brasil, sem água potável e esgoto sanitário.
No cotidiano nas maternidades públicas, em Manaus, ocorrem atendimentos de milhares de mulheres grávidas, no primeiro trimestre, em trabalho de aborto incompleto, a maior parte provocado pelo uso oral de substâncias químicas ou pelo manuseio criminoso da cavidade uterina. Essas mulheres chegam aos hospitais com hemorragia e infecção, algumas em risco imediato de vida. Todas são submetidas às curetagens uterinas salvadoras! A quase totalidade tem pouca escolaridade, mora na periferia urbana e em favelas.
As informações do DATASUS são impressionantes! Em algumas maternidades são realizadas mais curetagens para do que partos. O estudo realizado pelo Instituto do Coração evidenciou, entre 1995 e 2007, que a curetagem uterina pós-aborto aparece como a cirurgia mais realizada no Sistema Único de Saúde (SUS). Os números mostram a gravidade do problema de saúde pública: em 2015, 181 mil; em 2014, 187 mil e em 2013, 190 mil.
As estatísticas dos abortos provocados, no mundo, mostram que 97 países, cerca de 66% da população mundial, têm leis permissivas ao aborto como método anticoncepcional, até determinada idade gestacional; em outros 93 países, em torno de 34% da população, só o aborto apenas em situações especiais como más formações congênitas comprometendo a vida fetal, estupro e risco de vida para a mãe.
Nos países, onde o aborto como método anticoncepcional é permitido e amparado pelo Estado, as leis autorizam a interrupção da gravidez variando entre 10 semanas, na França, desde 1975, até 28 semanas, na Inglaterra, de 1967.
A análise dos abortos provocados como método anticoncepcional, nos países tropicais, os mais pobres, com milhões de pessoas morando em barracos, nas periferias urbanas, poderia iniciar com a pergunta: o que se mostra tão sedutor a essas mulheres capaz de lhes dar força para tomar uma atitude capaz de provocar o aborto como método anticoncepcional, que pode causar graves, incluindo a esterilização definitiva e a morte?
Dessa forma, tentar reduzir o problema aos limites socioeconômicos não é suficiente para explicar porque, ao longo de muito tempo, em diferentes culturas, certas mulheres arriscam a vida para interromper a gravidez não desejada.
Os registros informam que o aborto nunca deixou de ser realizado nos quatro cantos do planeta, desde os primeiros registros, contudo sob diferentes interdições.
Na Bíblia, mesmo contendo inúmeras referências específicas sobre a organização familiar, não cita uma só vez a prática abortiva. É como se o fato, que incontestavelmente deveria ocorrer, não tivesse importância social.
A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida”.
É possível que essas regras influenciaram o filósofo cristão Tertuliano (190‑197). Nos seus escritos abandonou a antiga abertura aristotélica, aceita em muitas comunidades do mundo greco-romano e adotou a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.
Apesar de o Concílio de Elvira (305) ter ameaçado de excomunhão todas as mulheres que abortassem após adultério, essa questão apaixonou muitos intelectuais do século 4. Como não existem registros refutando ou punindo o aborto por infidelidade, é provável que mesmo com o freio conciliar, predominou a tradição permissiva do aborto.
São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algasia, argumentou que “… não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. Em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos.
Grande parte da proposta teológica da Igreja em torno do aborto provocado está contido nas publicações de Santo Agostinho, escritas entre o final do século 4. Santo Agostinho, o eminente teórico do cristianismo, argumenta que todos os seres humanos nascem em pecado por serem concebidos em pecado, porque o primeiro homem, Adão, pecou. Essa fantástica articulação teórica – a doutrina do pecado original – foi consagrada como doutrina oficial da Igreja Católica.
É admissível que a doutrina agostiniana esteja, intimamente, associada à sexualidade proibida. Esse notável intelectual dos primeiros anos do cristianismo foi bastante competente para convencer outros fiscais da sexualidade, no milênio seguinte: “Estou convencido de que nada afasta mais o espírito do homem das alturas do que os carinhos da mulher e aqueles movimentos do corpo sem os quais um homem não pode possuir sua esposa.”
*Nesse conjunto do processo cristianização, surgiram comemorações saudando a vida concebida pela vontade de Deus. A festa da Natividade do Senhor, uma das primeiras, fixada no fim do século 4, iniciando os atributos de sacralidade das concepções. Sem que possamos precisar a temporalidade, foi seguida da natividade da Imaculada Conceição de Maria, celebrada no dia 8 de dezembro, no século 6, e da Anunciação, ou “festa da concepção de Cristo”, no século 7. Essas celebrações cristãs iniciaram o sólido processo substitutivo das festas com significantes semelhantes, oriundas da tradição politeísta, impondo a simbologia sagrada à gestação.
As dúvidas sobre a data correta para o início da humanização do feto ou o recebimento da alma, atravessaram os séculos e chegaram a São Tomás (1225‑1274). Esse magistral teólogo sustentou claramente que a animação não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio. A influência aristotélica no tomismo é também sentida na tese da pureza do sêmem, que ao sair do homem tem a intenção natural de formar outro ser igualmente perfeito, isto é, um homem. As circunstâncias desfavoráveis seriam responsáveis pelo nascimento das mulheres, por exemplo, como o vento sul úmido, que origina pessoas com mais líquidos, como as mulheres. A completa renúncia sexual é aceita por São Tomás como a única forma de alcançar a devoção perfeita.
O resultado dessa nova abordagem eclesiástica culminou com a atitude do papa Gregório XIV, apoiado no argumento de teólogos, revogando a Bula de Xisto V (1588), que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto em qualquer fase do feto.
A partir dos primeiros anos do século 20, parece não haver dúvidas quanto ao endurecimento da Igreja em relação ao aborto provocado como método anticoncepcional. A intolerância retornou aos rigores do cristianismo primitivo contido no Didaqué e as consequências seguiram.
O Papa Pio XI acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado, de certa forma retomando a posição de Aristóteles. Por outro lado, pode ter tido importância a industrialização crescente, no Ocidente, e a necessidade de inserir a mulher no mercado de trabalho, já que o aborto provocado em condições precárias e as trágicas consequências alcançavam as mulheres pobres.
O Papa Pio XI, no famoso discurso, dirigido aos obstetras, em 1951, enfatizou: “Não há nenhum homem, nenhuma autoridade humana, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, econômica, social e moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberadamente de uma vida humana inocente…visando sua destruição. “
O documento conciliar Gaudium et Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis”.
O mapa do aborto provocado como método anticoncepcional, no mundo, especialmente entre mulheres pobres, moradoras nas periferias urbanas, evidencia a tragédia, matando e mutilando mulheres pobres:
Considerando a significativa mortalidade e morbidade de mulheres pobres, que sob desespero, optam pelo aborto como método anticoncepcional, no Brasil, é necessário intensificar as campanhas claras de informação quanto aos métodos anticoncepcionais oferecido pelo Estado e manter esse assunto à discussão política permanente.
Crédito: http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/desenvolvimento/conteudo_283054.shtml