MIGUEL SERVET, MÁRTIR DAS INTOLERÂNCIAS DE IDEIAS E CRENÇAS RELIGIOSAS

João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A triste lembrança da morte do médico espanhol Miguel Servet, queimado vivo no fogo lento da madeira verde, em Genebra, no dia 27 de outubro de 1553, retrata o trágico resultado da perseguição aos destemidos que resistiram aos dogmas encobertos pelo véu da intolerância de crenças e ideias religiosas.

A coragem de Miguel Servet amedrontou as hierarquias poderosas. Acabou queimado em imagem, sob ordem dos católicos romanos, em Paris; na fogueira, dos calvinistas, em Genebra.

Além da sempre atual lembrança dessa morte dramática e cruel, o médico espanhol continua lembrado como ator fascinante, inserido nos confrontos sociopolíticos, no final do medievo e início do renascimento europeu, na liderança contra os abusos autoritários.

Miguel Servet nasceu em 1509, na aldeia espanhola Villanueva de Sigena, tornou-se homem de fé e ciência. Como cristão devoto, entendia a Bíblia como o livro divino que transcrevia a palavra de Deus e convicto de a origem da vida estava descrita no Gênese. Nesse sentido, enfrentando a intolerância do Santo Ofício, nas dissecções de cadáveres, incansavelmente, procurava nos pulmões o sopro da vida, como em Gênesis 2:7: Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente.

Sem achar o sopro da vida, a busca propiciou uma das mais importantes contribuições na anatomia da pequena circulação, entre o coração e os pulmões. Com clareza, o médico espanhol descreveu como o sangue caminhava do coração ao pulmão e vice-versa por meio das veias e artérias pulmonares que saiam e entravam nos átrios cardíacos.

Miguel Servet estudou na Universidade de Toulouse. Esse centro de ensino, em 1530, registrou em torno de dez mil alunos e seiscentos professores. Estudante de Direito, conviveu com os primeiros ares de maior liberdade, na alvorada renascentista. Naquela ocasião, desafiando a autoridade papal, ao protestar com veemência o Código Justiniano, que punia com a morte a negação da doutrina da Trindade, plantou o próprio calvário.

A partir da leitura atenta da Bíblia, em 1531, Servet comprovou a ausência de citação à Trindade e descreveu no seu livro “De Trinitatis erroribus” que a doutrina da Trindade como sofisma, originado no Concílio de Nicéia, em 325.

A Trindade não estava no livro sagrado!

Homem de fé, Servet admitia analogia bíblica entre o espírito e o sopro. Com discurso teológico pleno de fé, escreveu no seu famoso livro “Christianismi Restituio” as novas concepções que modificariam para sempre o conhecimento da pequena circulação que leva o sangue do coração ao pulmão e o traz de volta já oxigenado, para ser distribuído por todo o corpo: “O espírito vital se regenera nos pulmões de uma mistura de ar inspirado e de sangue delicado elaborado no ventrículo direito do coração. Sem dúvida, esta comunicação não se faz através da parede do coração, como se acredita até hoje e sim por meio de um grande orifício o sangue é impulsionado até os pulmões”.

Ao utilizar os próprios estudos anatômicos, apreendidos nas dissecções humanas, Servet materializou o sopro, como compreensão de espírito, dando vida ao corpo. O médico nunca seria perdoado de ter expressado essa contestação frente à autoridade eclesiástica, que mantinha a partilha sopro-espírito no exclusivo domínio do sagrado.

O desafio aumentou a perseguição. O fim avizinhava-se. As contradições do poder de Roma uniram-se em torno de um objetivo maior: destruir o audacioso médico espanhol. Ao perceber o perigo iminente, fugiu na direção da Suíça, esperançoso da prolatada maior liberdade entre os calvinistas. Triste engano! Tudo piorou ao defender o anabatismo, o grupo da Reforma Protestante que combateu o batismo na infância, sob o argumento de a conversão só teria validade consciente, na vida adulta.

Os calvinistas o encarceraram. No dia 27 de outubro de 1553, Miguel Servet foi queimado vivo no fogo lento da madeira verde para aumentar o sofrimento.

Durante o processo acusatório calvinista, em Genebra, Servet recebeu as acusações de dois crimes, ambos punidos com a morte: o antitrinitaríssimo, negando a Trindade, e a tolerância ao anabatismo. As incriminações foram suficientes para que os católicos e protestantes se unissem na destruição do inimigo comum.

Na França, a Igreja confiscou e destruiu a maior parte dos livros do médico espanhol. Os poucos exemplares sobreviventes do “Christianismi Restituio”, que descreveu as relações anatomias entre o coração e pulmão, partes essenciais da circulação sanguínea, só foram identificados anos depois de William Harvey ter publicado o livro “L’Exercitatto anatomica de motu cordis et sanguinis circulatione” e (“Exercício anatômico obre o movimento do coração e do sangue nos animais”.

O médico Miguel Servet, não resistiu às intolerâncias acusatórias católica e calvinista, metamorfoseados, seguem nos dias atuais amparando intolerâncias político-ideológicas, decidindo quem deve merecer clemência.

Ninguém lembra os nomes dos acusadores.

Miguel Servet continua vivo.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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