Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
Como existem em muitas circunstâncias certas análises dicotômicas, outras polares, em torno de conceitos que envolvem ciência e mito, nas praticas de curas, é interessante analisar algumas possíveis implicações teóricas do funcionalismo nesse conjunto social complexo, também como história de longa duração.
Antes de iniciar a reflexão, é adequado relembrar que o aparecimento da palavra “médico” na linguagem escrita, nas culturas mesopotâmicas, com claro registro desde o segundo milênio a.C., manteve forte marco identificador dos poderes desses especialistas sociais com indissolúvel ligação aos muitos deuses e deusas curadores — os curadores de muitos matizes, inclusive os médicos — para intervir na doença, como garantia para aumentar os limites da vida e sarar a dor fora de controle.
Os médicos entendidos sob essa perspectiva — agentes sociais capazes aumentar os limites da vida e sarar a dor fora de controle —, de lá para cá, mantiveram esse papel social, nas muitas culturas, nos cinco continentes.
Por outro lado, simultaneamente, desde aqueles tempos até o século 19, com ajuda da micrologia, após o convencimento coletivo, em especial, nas academias, da impossibilidade de existir a geração espontânea (até então prevalecia o senso comum de poder existir as “gerações espontâneas”, isto é, os aparecimentos de seres vivos a partir do “nada”, como as larvas visíveis na carne em decomposição), também não havia oposição dos médicos aos ritos de curas das idéias e crenças religiosas. Ao contrário, na maior parte dos textos era difícil distinguir onde começava a prática médica e terminava os ritos religiosos de curas.
Na atualidade, mesmo com os indiscutíveis progressos para desvendar a materialidade da doença, em dimensões cada vez menores da matéria viva, os ritos de curas intricados às idéias e crenças religiosas continuam vivos e servindo à catequese.
É possível que a arqueologia desse intricado nó que liga a Medicina às idéias e crenças religiosas como instrumentos de cura esteja assentada nas antigas compreensões do pecado como sinônimo de doença, onde o pecado representaria um conceito de erro, identificado com o mal, presente na maior parte das religiões e das filosofias. Logo, para que possa existir o mal como pecado (ou a culpa) e a consequente transformação em doença, como punição ao insurgente à ordem divina, é necessário existir o pressuposto de os homens e as mulheres possuírem o livre arbítrio nato. A compreensão da doença como punição ao pecado cometido instrui a interiorização de sentimentos complexos de *
Nas tábuas de escrita cuneiforme, um registro é particularmente interessante para demonstrar o quanto as práticas médicas eram atadas às crenças e idéias religiosas: assírios e babilônios entendiam o pecador como doente, débil, angustiado, possesso do demônio (utukku). Os termos sortilégio, malefício, pecado, doença, sofrimento aparecem como sinônimos. A libertação desse pecado — doença—, só seria obtida por meio dos ritos da confissão e da penitência.
É possível encontrar vestígios desse passado interligando Medicina e as idéias e crenças religiosas no famoso “Sermão”, atribuído a Hipócrates (460-375 a.C.), o mais conhecido representante da Escola de Cós, na Grécia, na interpretação do segredo com núcleo esotérico e sagrado, como na confissão religiosa. Essa característica da Medicina grega, nesse aspecto, mantinha semelhança com os ritos pitagóricos e o órficos. Essa compreensão é parecida, nos dias atuais, com a predominante entre os rezadores populares, onde a cura só se manifestaria competente se exercida pelos iniciados.
A consolidação do pensamento micrológico — a busca da materialidade das doenças nos micróbios — na segunda metade do século 19, representou um dos maiores obstáculos para que a Medicina se mantivesse conjugada às religiões. Esse alicerce — a busca da materialidade da doença — e estruturou o papel social do médico em torno conjuntos hierarquizados, em aparente contraste, dos tipos antigo-moderno, ciência-magia e conhecimento-supertição.
Após os anos 1950, a indústria médico-hospitalar do pós-guerra impôs a separação institucional do conhecimento médico popular historicamente acumulado das novas concepções da Medicina baseada na micrologia, que descrevia os micróbios — como as causas das doenças —, visível somente com as lentes de aumento. O médico, então, acrescentou às próprias práticas outros poderes: só ele poderia identificar o micróbio determinante da doença e oferecer tratamento adequado para evitar a morte e a dor fora de controle.
Para esse fim, a indústria médico-hospitalar em ascensão, que só perde em faturamento para a indústria bélica, nos países do Primeiro Mundo, incentivou melhorias no ensino da Medicina e a construção de hospitais, equipando-os com máquinas que pudessem identificar os micróbios e, como consequência, oferecer o tratamento para evitar a morte e a dor fora de controle.
Nos Estados industrializados o médico se situa no centro de uma dupla rede assistencial:
– Do hospital, como centro de observação, dispondo da tecnologia como instrumento de conhecimento e prestígio profissional;
– Do consultório particular, de onde projeta os conhecimentos e prestígios obtidos no meio hospitalar.
*Por outro lado, muito mais nos países da Américas da os benzedores, parteiras e rezadores, com fortes ligações com as idéias e crenças religiosas, ocupam um único cenário, que cumpre as duas funções de aquisição e aplicação do saber. Muitos trabalhos publicados mostram que esses curadores concentram as atenções nas faixas sócio-econômicas mais desfavorecidas. É possível distinguir três apresentações distintas das práticas médicas exercidas pelos médicos e pelos curandeiros no meio urbano e rural _
1 – A clientela do médico na sociedade urbana tem características muito bem definidas. O profissional estabelece uma relação que permite apropriar-se do conhecimento e atua como intermediário para receber a informação especializada que circula unidirecionalmente (Quadro I)
Na década de 1950, é possível que o poderoso mercado médico-hospitalar tenha se interessado na valorização dos médicos, que os identificava por meio de imagens de competência. Entre os exemplos, daquela época, se destacaram os seriados que mostravam a impecável competência do Dr. Kildare e Dr. Cannon. Nos últimos anos, os enfoques televisivos buscando novos mercados, fora dos hospitais, ataram as tecnologias dos diagnósticos médicos que utilizam aparelhos sofisticados, simbolicamente, representando soluções para outros pecados que afligem a sociedade do século 21: a criminalidade de todos os matizes. Nesse sentido, os tipos polares antigo-moderno, ciência-magia e conhecimento-supertição também alcançaram a Medicina forense.
1. O MÉDICO NA SOCIEDADE URBANA
DOENTE NO HOSPITAL
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OBSERVAÇÃO | v CONHECIMENTO
MÉDICO
| CONHECIMENTO
v
DOENTE NO CONSULTÓRIO PARTICUALR
2 – O curandeiro urbano exerce a sua prática a partir do conhecimento adquirido no seu próprio meio e a amaigama com os hábitos sócio-culturais (Valores sócio-culturais e saúde, J.C. 5.12.87), onde exerce uma ponte unindo o conflito entre o saber urbano e o rural (Quadro II).
2. O CURANDEIRO NA SOCIEDADE URBANA
ORIGEM EXOTÉRICA ORIGEM EMPÍRICA
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v v
CONHECIMENTO \ / CONHECIMENTO
\ /
v CURANDEIRO v
^ |
OBSERVAÇÃO | v CONHECIMENTO
DOENTE URBANO
3. Todo esse conjunto se modifica drasticamente quando se analisa as práticas médico cietnífica e mítica na sociedade rural. Elas apresentam características distintas e muitasa vezes se enfrentam diretamente na busca da hegemonia do poder (Quadro III)
3. O CURANDEIRO E O MÉDICO NO CAMPO
VALORES REGIONAIS VALORES ALIENÍGENAS
| \ |
SABER | \ |
v \ v
CURANDEIRO ^ \ MÉDICO
\ \ \ |
SABER \ \ \ | SABER
\ \ \ |
OBSERVAÇÃO \ \ \ |
\ \ v v
v \ COMUNIDADE
Nesta última circunstância, o saber apresenta o mundo urbano no rural combinando-se aos hábitos sócio-culturais mais fortes. O curandeiro pode exercer o papel catalisador do saber médico e dos intrincados valores de saúde e doença regionais.
É no campo que se pode sentir mais forte a luta pelo poder médio. Aqui novamente deve ser repensada a prática médica privada, porque ela servirá de parâmetro da competência entre o médico e o curandeiro. O rpimeiro estabelece a denominação prejorativa-supertição-ao segundo e o anulo com a afirmação de que representa a ignorância do conhecimento.
A medicina científica continua usando com frequência os componentes míticos das relações humanas quando o médico lança mão do seu carisma, do destaque do seu papel social e do próprio dispositivo tecnológico para colocar em prática o seu conhecimento e para alcançar as suas metas.
A reversão deste quadro é complexa e lenta. Um dos caminhos pode ser a mudança dos currículo das escolas de medicina com o objetivo de mostrar aos alunos os componentes sócio-culturais da saúde e da doença antes de ensinarem os atuais recursos disponíveis de tratamento.
Neste ponto, retornamos ao caráter de polarização inicialmente para dar corpo a esta divulgação teórica em aumentar seu significado simbólico para as lutas ideológicas vazias e sem visão histórica do tipo direita-esquerda, comunista-capitalista, operária-burguês, agente da CIA-agente da KGB, popular-científica como verdadeira manipulação dos mais simples com o objetivo de desacreditar o outro, muitas vezes a serviço do interesse corporativista e carreirista pessoal.
Foi designado o professor Wilson Alecrim como relator do processo para a criação de disciplina de História da Medicina. A escolha não poderia ter sido mais adequada.
Ele é educador e saberá conduzir as aspirações do grupo de professores que defender esta disciplina no curso de Medicina e evitará que as paixões pessoais e o medo sombrio das mudanças obstruam a vontade de quase trezentos alunos que se incorporam nesta luta.