Prof.Dr.HC João Bosco Botelho
A primeira Santa Casa de Lisboa, fundada em 1498, foi marcada pela tentativa da administração real portuguesa administrar os lucros com as ações de saúde ligadas à caridade. Em poucos anos, ficou patente que esse esforço não deu certo. A hierarquia eclesiástica foi adaptada às novas exigências e continuou ligada ao novo hospital.
A Santa Casa de Lisboa foi revestida de grande destaque imediatamente após o início do seu funcionamento e começou a desfrutar de várias regalias e concessões dadas por D. Manuel (1495 – 1521). A principal delas era a liberação do pagamento de todos os impostos.
Os crescimentos político e econômico da primeira Santa Casa impuseram novas regras. Não mais poderia ser dirigida por qualquer cristão interessado na caridade. Novas qualidades foram exigidas, ficando mais fácil aos nobres e membros influentes do clero assumirem os postos mais importantes da Irmandade da Misericórdia.
O Mordomo da Santa Casa passou a ser o único autorizado a realizar a coleta das esmolas em Lisboa. As ações deveriam estar no fiel cumprimento do estatuto que regulamentava as obrigações da Irmandade da Misericórdia, em torno de sete objetivos espirituais e sete corporais. A essência normativa estava baseada em Mt 25, 34-36.
As Santas Casas passaram, rapidamente, a ser negócio muito lucrativo como conseqüência dos benefícios reais recebidos e do bem montado sistema para recebimento das doações dos súditos da Metrópole e das colônias. O testamento de Mem de Sá pode dar a avaliação aproximada da quantidade das doações recebidas pelas Santas Casas. A terça parte dos bens do Governador Geral, no Brasil, ficou com a Misericórdia da Bahia e a mesma percentagem do patrimônio, em Portugal, foi legada à Misericórdia de Lisboa.
A Misericórdia de Goa, fundada durante o governo de Lopo Soares (1515-1518), teve enorme importância estratégica e política porque essa cidade indiana era o porto final de penetração no Oriente e recebia muitos viajantes. Os jesuítas, sempre atentos à dinâmica das relações políticas, ao perceberem o significado representado pela Misericórdia de Goa, reivindicaram e obtiveram do Vice-Rei Mathias de Albuquerque, em 1951, a exclusividade da Mesa Diretora e o recolhimento dos donativos.
As regalias patrocinadas pelo cargo de Mordomo não deveriam ser poucas. Só isso explica a atitude do paulista Jose Ortiz de Camargo, em 1651, que recusou ser juiz de São Paulo de Piratininga para não renunciar ao título de provedor da Misericórdia.
A Igreja, representada por diversas ordens religiosas, principalmente a jesuíta, teve um papel de destaque no conjunto que favoreceu a consolidação dessas instituições de assistência médico-social. Nelas, o poder eclesiástico estendia o seu poder temporal e aumentava a sua riqueza, sempre amparada pelo imaginário da caridade cristã. O fortalecimento da aliança Estado-Igreja, para suprir as graves deficiências da assistência médica, reflete uma pequena parte da resultante que administrou as ações de saúde como caridade cristã. O resultado final foi materializado nas Santas Casas da Misericórdia no mundo cristão, tendo alcançado mais de setecentas cidades espalhadas no mundo de colonização portuguesa. Somente no Brasil, elas chegaram a trezentas e vinte e seis filiais. A do Rio de Janeiro já estava consolidada em 1582, quando a frota de Diogo Flores Valdes chegou com muitos doentes a bordo.
A Santa Casa da Misericórdia de Manaus, encravada na floresta amazônica, reproduziu, mais de três séculos depois, os mesmos princípios da caridade cristã, que nortearam a primeira Santa Casa em Lisboa. A Misericórdia amazonense chegou como onda retardatária do processo colonizador português, no período em que, na Europa, os antigos critérios da hospitalização dos doentes sofriam severas críticas e revisões.
O reclamo popular influenciou a decisão tomada pelo Presidente da Província do Amazonas para fundar a Irmandade da Misericórdia. Era trágica a situação hospitalar em Manaus, na segunda metade do século XIX. A inauguração da Santa Casa da Misericórdia de Manaus ocorreu em 16 de maio de 1880. Apenas nove anos depois, apareceram os primeiros problemas da viabilidade econômica do hospital, apesar das facilidades tributárias recebidas.
Em Manaus, também foram mantidos os principais pontos do Estatuto da Misericórdia de Lisboa, onde predominavam as obrigações voltadas para a assistência aos necessitados e doentes. Esses princípios, resguardados no ideário cristão, foram reafirmados na modificação estatutária da Santa Casa de Manaus com a legitimação patrocinada pelo Estado, ao reconhecer a importância da caridade na saúde pública.