Prof. D. HC João Bosco Botelho
Os dois pressupostos ─ a existência da coisa sagrada nas crenças religiosas como instrumento de cura e a religião mantendo diversos níveis de conflito com a medicina universitária ─, contribuíram para estruturar pensamentos que conduziram o Homem no duplo papel de executor e objeto das práticas de curas, para enfrentar o determinismo da morte.
Também por essa razão não é adequado entender a religião como Portter: “A religião foi a mãe das ciências e das artes…”, mas ampliar o horizonte dos debates em Jung, que fundamentou a confissão religiosa na transformação provocada pela experiência pessoal do “numinoso “, seguida da fidelidade à coisa sagrada.
É possível identificar várias tentativas para entender a religião a partir das palavras latinas “relegere” e “religare”, porém todas são passíveis de críticas, já que esses termos latinos não tinham, exatamente, o atual sentido de religião. É possível que indicasse também conjunto complexo de regras e interdições não relacionadas à coisa sagrada.
É importante relembrar que diferentes formas de ideias religiosas, presentes na maioria da população do planeta, entre as quais também predominam entendimentos das doenças e da morte atados à coisa sagrada.
Os livros de medicina e religião não pararam de ser escritos, de geração a geração, para além dos sistemas de valores de referência e de interpretações aos quais se ligam. Até um passado recente, a maior parte tecida nas historias lineares quantitativas, onde as estruturas das mentalidades foram seguidamente pouco valorizadas. A literatura que trata dos mesmos temas, nos últimos quarenta anos, por meio da Nova História, se afastou dessa análise acrítica e se enriqueceu nos trabalhos associando a intencionalidade de curar das práticas religiosas e coisa sagrada..
Os progressos teóricos para melhor entender os movimentos sociais por meio da História das Mentalidades, estão se fazendo de modo contínuo, inclusive no que diz respeito às abordagens das doenças e curas atreladas à coisa sagrada.
Nessa trilha, existem antigas evidências da associação da coisa sagrada à cura e à luta ancestral para vencer o determinismo da morte. Uma das mais significativas é a data da comemoração do dia do médico — 18 de outubro — que corresponde, na mitologia grega, à festa do filho de Apolo, Asclépio, o mais importante deus curador do panteão grego. Pela importância da festa nas tradições populares da antiguidade, o cristianismo provocou inteligente sincretismo e manteve o mesmo registro festivo, no calendário cristão, ao nascimento de São Lucas, o Evangelista médico.
Pode ter sido essa epopéia — edificada na luta contra a morte inevitável —, desde a pré-história, um dos fatores que contribuíram no aparecimento da especialização que ungiu a procura sistemática do conforto e da saúde ligada à coisa sagrada.
Nessa época remota, os registros neandertais demonstram o entendimento da morte dos entes queridos entrelaçado a coisa sagrada e ao sepultamento ritual. Muitos esqueletos mostram as cabeças voltadas ao leste, acompanhados generosas porções de carnes e de instrumentos de caça e pesca.
O imaginável renascimento após a morte — mais significante de todas as coisas sagradas — que prolonga a vida ao tempo infinito, é o alicerce que mantém vivo o conflito de competência entre a medicina e a religião.