Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
A cirurgia, no passar dos milênios, continua mantendo a mesma característica básica – a arte trabalhada no próprio homem – onde a luta contra a dor e a morte é o pilar sustentador do início, meio e fim.
Da primeira amputação cirúrgica realiza, em torno de 25.000 anos, no Monte Zagros, no Iraque, até os transplantes, a cirurgia guardou íntima relação com a busca da perfeição do corpo no arquétipo divino antropomórfico.
É possível comparar a cirurgia com a pintura ou outra expressão da arte humana. Quando o cirurgião consegue retirar o câncer da tireóide ou o da laringe ulcerada, desenvolve um conjunto de gestos que é indissolúvel da arte. A sensação da obra terminada, na cirurgia, não deve ser diferente da sentida pelo pintor ao terminar o quadro ou a do compositor ao ouvir a música.
Os gregos reconheceram a importância da cirurgia para a Medicina. Os livros escritos, na escola de Cós, na Grécia antiga, em torno do 4 século a. C., atribuídos a Hipócrates, contêm volumosa referência à prática cirúrgica.
Com o avanço conquistador dos romanos e a organização militar desse povo, grandes hospitais militares foram construídos, nas principais cidades do Império, para receber os soldados feridos em combate. Nessa fase, a cirurgia alcançou grande desenvolvimento, principalmente no tratamento das feridas traumáticas de guerra. É dessa época que os estudos de Herófilo (340-? d. C.) e de Eresistrato (330-? d.C.) identificaram a tireóide, a próstata, o estômago, o duodeno, o sistema nervoso além de diferenciar o tendão do nervo.
A partir da ascensão do cristianismo, a partir de Constantino, no século 4, a Medicina começou a absorver o sentido de caridade e perdeu parte das conquistas em torno da técnica.
Os reinos cristãos edificaram os hospitais para abrigar os indigentes – nosocomia. A partir dessa fase, entre os séculos 6 e 7, iniciou o período muito difícil para os cirurgiões. Em conseqüência das restrições eclesiásticas, o corpo humano não pode mais ser estudado e a guarda sigilosa, nas abadias, dos livros de anatomia escritos pelos gregos e romanos, contribuíram para que a cirurgia fosse uma atividade temida de ser exercida.
Esta situação de estorvos à cirúrgica se consolidou ainda mais no Concílio de Tours (1163), por meio da Bula Ecclesia Abohorret a Sanguine ou “Igreja abomina o sangue”.
A cirurgia atravessou dez séculos entre severas restrições. Nesse período, os cirurgiões-barbeiros ocuparam os espaços amputando e lancetando, arrancando dentes, cortando cabelos e barbas.
A primeira resistência a essa situação ocorreu na Faculdade de Medicina de Montpellier. Alguns cirurgiões, liderados por Jean Pitard (1238-1315) fundaram a Confraria de Cirurgiões, sob a proteção de São Cosme e São Damião e se separaram dos barbeiros.
A cirurgia foi incorporada, definitivamente, como especialidade médica a partir de 1436, quando os antigos cirurgiões-barbeiros ingressaram na Faculdade de Medicina de Paris.
Com a utilização da anestesia, a partir de 1846, e da anti-sepsia, em 1867, finalmente, o cirurgião pôde debruçar-se por mais tempo nos objetos da sua arte – os corpos – e reunir esforços para empurrar os limites da dor e da vida.