A CIRURGIA COMO ARTE

João Bosco Botelho

Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A cirurgia, no passar dos milênios, continua mantendo a mesma característica básica — a arte trabalhada no próprio homem — onde a luta contra a dor e a morte é o pilar sustentador do início, do meio e do fim.

É possível comparar a cirurgia com a pintura ou qualquer outra expressão da arte humana. Quando o cirurgião consegue retirar o câncer da tireóide ou o da laringe ulcerada, desenvolve um conjunto de gestos que é indissolúvel da arte e da habilidade manual. A sensação da obra terminada em uma cirurgia não é diferente da sentida pelo pintor ao terminar seu quadro ou a do compositor ao ouvir a sua criação.

Foram os gregos que reconheceram a importância da cirurgia para a Medicina. Os livros escritos, na escola de Cós, na Grécia antiga, em torno do IV século a.C., atribuídos a Hipócrates, contêm volumosa referência à prática cirúrgica desenvolvida pelos médicos especialistas.

Com o avanço conquistador dos romanos e a organização militar desse povo, começaram a aparecer os grandes hospitais militares, construídos nas principais cidades do Império, para receber os soldados feridos em combate. Nessa fase, a cirurgia alcançou grande desenvolvimento, principalmente no tratamento das feridas traumáticas de guerra. É dessa época que os estudos de Herófilo (340 – ? d. C.) e de Eresistrato (330 – ? d.C.) identificaram a tireóide, a próstata, o estômago, o duodeno, o sistema nervoso além de diferenciar o tendão do nervo.

A partir da ascensão do cristianismo, no Império Romano, a partir de Constantino, no século IV, a Medicina começou a absorver na sua prática o sentido de caridade e perdeu grande parte das conquistas em torno da técnica. A Medicina passou a ser compreendido como sacerdócio, em comparação com a ação médica milagrosa desenvolvida por Jesus Cristo, que operava milagres na cura dos cegos, paralíticos e leprosos. O Concílio de Tours (1163) proclamou a bula “Ecclesia Abohorret a Sanguine”(A Igreja abomina o sangue). Foi nessa condição que a cirurgia atravessou dez séculos, sendo exercida, neste período, pelos cirurgiões-barbeiros que amputavam, lancetavam, tiravam dentes, drenavam os abcessos, cortavam cabelo e barba.

A cirurgia foi incorporada, definitivamente, como especialidade médica a partir de 1436, quando os cirurgiões foram aceitos como alunos graduados da Faculdade de Medicina de Paris. Começou, timidamente, com supervisão da igreja, o movimento cultural de retorno ao homem como o centro da forma viva. O Renascimento que chegava e com ele a nova busca do conhecimento do corpo.

Com a utilização da anestesia geral, a partir de 1846, e da anti-sepsia, em 1867, finalmente, o cirurgião pôde debruçar-se por mais tempo nos objetos da sua arte – o homem e a mulher – e reunir esforços para empurrar os limites da dor e da vida.

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DIA DO MÉDICO: PERMANENTE LUTA CONTRA A DOR E A MORTE

João Bosco Botelho

Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A humanidade sempre conviveu com a certeza da doença e da morte. A inteligência humana conseguiu elaborar, no espaço sagrado, idéias para justificar a inexorabilidade da agonia do frio, da fome, da doença e da morte. A partir de uma fase, cujo início é impossível de precisar, predominou aquela que projetava a ambicionada felicidade na imaginável vida depois da morte. A epopéia edificada na busca dessa imortalidade representou um dos principais fatores para o aparecimento dos agentes da cura, da benzedeira ao médico, e a materialização da Medicina como especialidade social.  

 Curar é uma palavra mágica porque interliga o sagrado com o profano. O ato de curar traz na sua essência o poder ou a sensação de vencer o maior de todos os obstáculos da vida: a morte.

Este é o ponto básico da principal resistência humana: vencer a morte inevitável!

 O fato está claro na mitologia grega. A data atual de comemoração do dia do médico — 18 de outubro — corresponde à época em que era celebrada a festa do filho de Apolo, Asclépio, o deus da Medicina grega. O estudo da representação social de Asclépio, no panteão grego, é capaz de identificar um ponto comum na relação entre os mundos sagrado e profano: a insubordinação humana à ordem divina quanto a mortalidade dos homens.

 O poder da divindade, artisticamente construído, mantendo a primazia sobre a morte, foi revigorado pela gradativa consolidação do cristianismo como religião dominante. O calendário cristão manteve o dia 18 de outubro como o registro festivo para marcar o nascimento de Lucas, o evangelista médico.

A serpente de Asclépio se enrolou na cruz cristã e formou um dos mais belos sincretismos religiosos da história. A primeira, símbolo da imortalidade embaixo da terra, e a cruz como a representação do inatingível acima da terra, fecham o ciclo mítico pendular entre o desconhecido situado acima da cabeça e abaixo dos pés do homem.

 Entretanto, quando o medo da morte nos alcança ou aqueles que nos são amados e os recursos da Medicina são insuficientes para preservar-lhes a vida, como na Grécia antiga, em que os doentes suplicavam pelo milagre de Asclépio, o Ocidente cristianizado se volta à bondosa imagem de Jesus Cristo capaz de curar muito além dos recursos médicos oferecidos.

Ainda estamos angustiantemente longe de compreender os mistérios da vida. Contudo, não é sem razão nem simples coincidência que os médicos comemoram, muitos sem saberem por que, o dia 18 de outubro como marco da resistência à morte inevitável.

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