SAGRADO E PROFANO

João Bosco Botelho
Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier


A origem do poder societário, em torno da posse do território, se mostrou em duas vertentes complementares e alternantes, nascidas e reproduzidas pelo conflito de competência, na ordenação das sociedades: a sagrada e a profana . O embate contínuo, originado do choque das ideias em torno dos dois espaços, impostas pelo movimento social, impediu a perenidade dos grupos dominantes.
Elas atuam como pontes entre os meandros, ainda desconhecidos, dos elos entre o aparelho genético e a memória acumulada, no sistema nervoso central. Expressam, na vida de relação, o movimento pendular entre a objetividade e a subjetividade, como o primeiro passo, para tornar visível o invisível e oferecer credulidade àquilo imperceptível aos sentidos.
A ficção, em todas as formas, é a matriz da linguagem, unindo esses sentimentos ao mundo. Pela complexidade, não pode ser dependente de um só vetor, como a luta de classes ou qualquer outro. É mais do que uma representação do visível; trata-se do esforço para materializar o invisível . É única porque o ato, como o ser, não se repete; cada pessoa tem a exclusiva divisória, sofrendo a influência da totalidade dos múltiplos fatores exógenos (socioculturais) e endógenos (herança genética).
Os sentimentos mais consistentes, ligando os seres entre si e ao objeto, só são consolidados nas mentalidades, memorizados e reproduzidos, quando estão elaborados em estreita consonância com as necessidades pessoais, requeridas pelo processo societário.
O ser é a fantástica ligação do biológico ao social; não existe sem as relações de trocas e estas não seriam possíveis sem ele. O objetivo e o subjetivo, contida nos determinantes que ligam o ser-tempo ao mundo, oferecem maior possibilidade de acerto.
Exatamente por não permanecerem isoladas e estarem integradas ambiguamente, o parâmetro analítico do observador, embotado pelo véu da parcialidade, é insuficiente para entender a escolha, num certo momento, do laico ou do sacro. Tudo ocorre como na paixão, onde a lógica dos outros carece de ressonância.
A condição de estar apaixonado foi aprimorada para fugir ao rigor da ordem social. Como é plena da certeza, não tem limites. É majestosa nas relações pessoais. Só nessa circunstância, é possível fazer algo sem esperar retribuição. Fora dela, predomina o confronto e a troca é a atitude almejada.
Entretanto, não se dá sobre o nada. As estruturas nervosas, centrais e periféricas, responsáveis pela intercomunicação entre a memória, a linguagem, os sentidos e o social, ligam-se ao córtex cerebral através de bilhões de sinapses. É a prisão mental de cada um. É a jarra de Pandora , de onde saem os infortúnios e as esperanças da humanidade.
A vida de relação está sob o constante crivo neurológico e funcional. Não existe qualquer dúvida das conjunções anatômicas e emocionais, mesmo que, até hoje, não estejam bem explicadas.
Estão identificados pela cirurgia experimental alguns centros neurológicos específicos, relacionados com o comportamento emocional. Quando estimulados, artificialmente, pela corrente elétrica, nos animais de laboratórios, são capazes de impelir as expressões de sono, agressividade e medo ou fazer o animal assumir postura de cópula ou de choro.
As linguagens faladas e escritas não são diferentes na essência. Tem que existir algum tipo de coerência funcional, a nível molecular, na célula, ligando o ser ao objeto. A capacidade individual para sentir e expressar as emoções nasce como consequência dessas relações biológico-sociais. Todos estão submetidos à influência dos incontáveis vetores originados dentro e fora do corpo.
Vez por outra, o lento desvendar avança com o estudo dos achados acidentais. Foram descritos dois casos clínicos , na literatura especializada, relacionados com os núcleos cerebrais da linguagem, atendidos por pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e do Hospital Maggiore, Bolonha, na Itália.
No primeiro, um homem com 62 anos, depois de sofrer um derrame cerebral, não conseguiu mais escrever as vogais; as palavras eram escritas em perfeita simetria com a fala oral, porém só com as consoantes. O paciente não conseguia simbolizar as cinco letras. É inevitável pensar que a escolha dos caracteres, para compor a linguagem escrita, esteja contida num segmento específico do cérebro.
O segundo relato diz respeito a outro, também do sexo masculino, 32 anos, norte-americano. Depois de ter sido acometido de acidente vascular cerebral, perdeu a familiaridade com o inglês, sua língua materna. Passou a acrescentar vogais às palavras, resultando num sotaque escandinavo. A cura do distúrbio aconteceu na medida da recuperação da área cerebral danificada pela isquemia.
É precisamente nessa convergência, entre o físico presente na estrutura celular e o crivo do genético-social, dando função à forma, que se dá na maravilhosa materialidade do pensamento, invisível, capaz de nominar, desvendar, criar e transformar o objeto visível.
Por essa razão, não existe discurso livre do saber acumulado historicamente. As gramáticas são, no cerne, ideológicas, porque expressam um tipo de posse do real. A busca da verdade se opera no conflito do sagrado com o profano, refletindo um estado do ser-tempo, numa certa temporalidade.
O objetivo primário da ação neurológico-motora (a ideia e o movimento do corpo), motivada pela mensagem atávico-social, responde, por si mesma, ao mais fundamental sentimento mantenedor da sobrevivência: a cooperação, como traço essencial da crítica da proteção pura.
se trata só do viver. O morrer pode representar, em certos instantes, o ato cooperativo dominante e, nesse caso, a morte representará a proteção pura.
O anseio para compreender as diferenças entre o constatado pelos sentidos e o imaginado extra sensorial propiciou interdependência muito forte entre elas. Em certas etapas do processo, é impossível saber onde começa uma e termina a outra.
Não existiram partidas independentes. A realidade vivida com os outros animais e com a terra, dividindo o meio ambiente comum, contribuiu para fortalecer as imitações simbólicas, presentes como marcas profundas do tempo passado, nas memórias sócio genéticas.
O fato de os hominídeos terem aprimorado as cópias do perceptível, na natureza circundante animais e coisas nos abrigos das cavernas, há milhares de anos, representa a clara evidência.
Muitos inventos e expressões estéticas, no passado e no presente, projetados pelo primor da técnica, acabam sendo, facilmente, identificados no meio comum partilhado.
O ímpeto para reproduzir os elementos visíveis , tirando deles a utilidade para sustentar o conforto (aqui compreendido como a fome e a sede saciadas, o alívio da dor e o abrigo contra o frio e o calor), influenciou as primeiras combinações entre pensamento e conhecimento. Ambos, ajudam a explicar por que os portadores de doenças congênitas, excludentes do convívio social, frequentemente, são menos aptos e não oferecem risco às disputas. Assim, são alvos prediletos das atenções das muitas ideias e crenças religiosas.
Nada representou tanto para a malha evolutiva quanto a cooperação para transpor os obstáculos. Os inaptos, de todas as espécies, foram arrasados e desapareceram.
A lenta produção dos dois componentes, de valores ambíguos, nas mentalidades, o sagrado e o profano, engrenagem profunda da roda social cooperativo-competitiva, delimitou como partes fundamentais dos respectivos domínios, os limites do puro (bem, bom, permitido, casto) e do impuro (mal, mau, proibido, maculado).
A longa história da divinização das coisas e dos acontecimentos, isto é, a passagem do profano para o sagrado pela força sedutora da linguagem, quando compreendida como artifício para superar os limites, é de sutil beleza.
A literatura épica está repleta de aventuras conduzidas por intrépidos guerreiros que acabaram colocados, por si mesmos ou pelos seguidores apaixonados, no incomensurável panteão deífico.
A obra do mitógrafo grego Evêmero constituiu, no Ocidente, o primeiro alerta para revisar o antiguíssimo processo de nascimento, o invisível se tornar visível.
Os princípios evemerianos foram pinçados, com competência, pelos teóricos da cristandade dos primeiros tempos, para combater e substituir as antigas crenças. Muitos observaram a semelhança entre os ritos de iniciação do orfismo e os preconizados pela liturgia eclesiástica.
Para superar o impasse, vários polemistas, como Lactâncio, Ambrósio e Agostinho atacaram, com ferocidade, a mitologia grega, caracterizando-a como falsa.
Sob esse argumento reflexivo, o impulso de dar sentido prático à ideia, de torna-la útil como objeto de troca, molda o pensamento mágico semelhante ao conhecimento empírico. Quando a proposta, para transformar a sociedade, reflete a imprecisão grosseira, relacionada com a herança simbólica, ocorre a resistência imediata e a consequente recusa para aceitar.
Para não incorrer nesse tipo de erro, é comum os mensageiros de uma nova ordem procurarem o apoio na conduta consagrada. O mais simples é nominar outra vez os símbolos mais significativos.
No cristianismo primitivo, essa situação pode ser sentida em vários períodos. Todavia, Clemente de Alexandria, um dos poucos que citou Evêmero7, preocupou-se em estabelecer linhas paralelas entre a doutrina cristã e a filosofia grega .
A disputa pela posse da verdade exclusiva estimula os que defendem, com paixão, qualquer nova sentença que encontre resposta coletiva. A ressonância entre os ouvintes serve como prova e abre o caminho para o líder. O litígio mantém as ideias na tona e pode durar várias gerações. Ninguém impõe menor vigilância a si mesmo do que o apaixonado.
A promessa de castigo pessoal ou coletivo, refletindo o medo da dor, sempre foi o instrumento usado para limitar as paixões . A força da tradição, acumulada pelo matracar incessante, durante milhares de anos, não pode ser deslocada com facilidade, mesmo sob a ameaça a resistência ao indesejável.
O social acumulado, como a linguagem, traduz necessidades básicas, anteriores à vida societária urbana, capaz de dar realidade ao subjetivo. A busca sistemática do alimento e do abrigo são intocáveis no conteúdo. A comida dá sentido ao estranho desconforto da fome, como a visão da mulher amada consagra o amor e o advento materializa a divindade.
Não se trata de valorizar mais a História em detrimento da natureza ou do social: as partes refletem os continentes da mesma consciência. Expressam a incompetência de todas as teorias que valorizaram, exclusivamente, uma delas, para entender a forma e mudar a função. O darwinismo com a biologia, o marxismo com as lutas de classes, a psicanálise com a sexualidade e a genética com as moléculas de DNA.
O atrito, provocado pelo confronto das ideias, é muito poderoso. Alcança todos os ordenadores do território, sejam aliados ou inimigos. O conflito para delimitar as verdades evita a dominação dentro do mesmo segmento.
Isidoro de Sevilha (560-636), tinha motivos de continuar rezando, para afastar os deuses do politeísmo greco-romano, argumentando serem simples homens divinizados.
A incerteza conceitual do permitido e do proibido reside no fato da possibilidade, sempre presente, da passagem de uma para a outra categoria . Em dependência de certas circunstâncias, o puro poderá virar impuro e vice-versa.
A alternativa brotou da necessidade de adaptar os princípios da oposição, encabeçando o contínuo.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. p. 28.
SILVEIRA, Nise. Linguagem do imaginário torna visível o invisível. Folha de São Paulo. São Paulo, 6 out. 1990.
As células do córtex cerebral estabelecem incontáveis ligações com outras partes do sistema nervoso central. MACHADO, Angelo. Neuroanatomia funcional. Rio de Janeiro, Atheneo, 1974. p. 214; TESTUT, L e JACOB, O. Tratado de Anatomia Topográfica: com aplicações médico-cirúrgicas. Barcelona, Salvat, 1952. p. 84-184.
CEM TRILHÕES de conexões para ligar a mente. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 mai. 1991; NEGRO, Jacomo. Estrutura cerebral separa vogal e consoante: Pesquisa relata caso de engenheiro que não conseguia escrever as vogais após sofrer derrame no cérebro. Folha de São Paulo. São Paulo, 20 set. 1991;
Não estamos nos referindo às teses heideggerianas, em parte retomadas pela Escola de Frankfurt, da técnica como utilização da violência do homem contra o homem. ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. p. 12-3; CALIFE, Jorge Luís. Natureza inspira e desafia criações do homem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 jul. 1990; INFORMÁTICA imita seres humanos para aprender. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 mai. 1991.
CHARBONNEAU, Paul-Eugène. O homem à procura de Deus. São Paulo, Loyola, 1984. p. 49; NEVES, Lucas Moreira, dom. Em órbita. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 4 mar. 1992: “Ora, um jovem chamado Jesus é o único com autoridade moral para dizer: Eu sou o caminho. O único que vale a pena percorrer”; LEAKEY, Richard E. A evolução da humanidade. São Paulo, Melhoramentos, 1981. p. 20: “De todas as espécies animais que existiram, só um por cento está viva atualmente: sem dúvida o destino último da matéria da maioria das espécies é a extinção”; CALLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa, Ed. 70, 1988. p. 33: “Não há sistema religioso algum, mesmo entendido em sentido largo, em que as categorias do puro e do impuro não desempenhem um papel fundamental”; CERIMÔNIA secreta dá divindade ao imperador. Folha de São Paulo. São Paulo, 7 out. 1990; SALES, Eugênio de Araújo, dom. A chegada da fé à América. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 jan. 1992:”. E agradeçamos a Deus os mensageiros que iluminaram estas terras com a Luz da Fé cristã”.
SEZNEC, Jean. Los dioses de la antigüidade en la Edade Media y el Renacimiento. Madrid, Taurus, 1987. p. 19.
DONINI, Ambrogio. História do cristianismo: das origens a Justiniano. Lisboa, Ed. 70, 1988. p. 127; ORLANDIS, José. Historia de la Iglesia: la Iglesia antigua y medieval. Madrid, Ed. Palabra, 1989c. p. 89.
LEA, Henri-Charles. Histoire de l’Inquisition au Moyen-Age. Paris, Jerome Millon, 1986. 3 v; POLÍCIA secreta espionava os alemãs até no confessionário. Folha de São Paulo. São Paulo, 3 fev. 1992.
LE GOFF, Jacques. El cristianismo medieval en occidente desde el Concílio de Nicea (325) hasta la reforma (princípios del signo XVI). In: PUECH, Henri-Charles, dir. Las religiones constituidas en Occidente y sus contracorrientes. México, Siglo Veintiuno Editores, 1981. p. 108-9; DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. p. 75.
LE GOFF, Jacques. El cristianismo medieval en occidente desde el Concílio de Nicea (325) hasta la reforma (princípios del signo XVI). In: PUECH, Henri-Charles, dir. Las religiones constituidas en Occidente y sus contracorrientes. México, Siglo Veintiuno Editores, 1981. p. 108-9; DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. p. 75.
movimento social. Caso contrário, tivesse ocorrido a inflexibilidade, a estrutura dos opostos conflitando, como bloco monolítico irremovível, não teria permanecido viável durante tanto tempo.
O sagrado, estritamente ligado à ideia da divindade com a experiência religiosa com o numinoso , continua geando a expectativa da troca.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. p. 28.
SILVEIRA, Nise. Linguagem do imaginário torna visível o invisível. Folha de São Paulo. São Paulo, 6 out. 1990.
As células do córtex cerebral estabelecem incontáveis ligações com outras partes do sistema nervoso central. MACHADO, Angelo. Neuroanatomia funcional. Rio de Janeiro, Atheneo, 1974. p. 214; TESTUT, L e JACOB, O. Tratado de Anatomia Topográfica: com aplicações médico-cirúrgicas. Barcelona, Salvat, 1952. p. 84-184.
CEM TRILHÕES de conexões para ligar a mente. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 mai. 1991; NEGRO, Jacomo. Estrutura cerebral separa vogal e consoante: Pesquisa relata caso de engenheiro que não conseguia escrever as vogais após sofrer derrame no cérebro. Folha de São Paulo. São Paulo, 20 set. 1991;
Não estamos nos referindo às teses heideggerianas, em parte retomadas pela Escola de Frankfurt, da técnica como utilização da violência do homem contra o homem. ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. p. 12-3; CALIFE, Jorge Luís. Natureza inspira e desafia criações do homem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 jul. 1990; INFORMÁTICA imita seres humanos para aprender. Folha de São Paulo. São Paulo, 24 mai. 1991.
CHARBONNEAU, Paul-Eugène. O homem à procura de Deus. São Paulo, Loyola, 1984. p. 49; NEVES, Lucas Moreira, dom. Em órbita. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 4 mar. 1992: “Ora, um jovem chamado Jesus é o único com autoridade moral para dizer: Eu sou o caminho. O único que vale a pena percorrer”; LEAKEY, Richard E. A evolução da humanidade. São Paulo, Melhoramentos, 1981. p. 20: “De todas as espécies animais que existiram, só um por cento está viva atualmente: sem dúvida o destino último da matéria da maioria das espécies é a extinção”; CALLOIS, Roger. O homem e o sagrado. Lisboa, Ed. 70, 1988. p. 33: “Não há sistema religioso algum, mesmo entendido em sentido largo, em que as categorias do puro e do impuro não desempenhem um papel fundamental”; CERIMÔNIA secreta dá divindade ao imperador. Folha de São Paulo. São Paulo, 7 out. 1990; SALES, Eugênio de Araújo, dom. A chegada da fé à América. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 jan. 1992:”. E agradeçamos a Deus os mensageiros que iluminaram estas terras com a Luz da Fé cristã”.
SEZNEC, Jean. Los dioses de la antigüidade en la Edade Media y el Renacimiento. Madrid, Taurus, 1987. p. 19.
DONINI, Ambrogio. História do cristianismo: das origens a Justiniano. Lisboa, Ed. 70, 1988. p. 127; ORLANDIS, José. Historia de la Iglesia: la Iglesia antigua y medieval. Madrid, Ed. Palabra, 1989c. p. 89.
LEA, Henri-Charles. Histoire de l’Inquisition au Moyen-Age. Paris, Jerome Millon, 1986. 3 v; POLÍCIA secreta espionava os alemãs até no confessionário. Folha de São Paulo. São Paulo, 3 fev. 1992.
LE GOFF, Jacques. El cristianismo medieval en occidente desde el Concílio de Nicea (325) hasta la reforma (princípios del signo XVI). In: PUECH, Henri-Charles, dir. Las religiones constituidas en Occidente y sus contracorrientes. México, Siglo Veintiuno Editores, 1981. p. 108-9; DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. p. 75.
LE GOFF, Jacques. El cristianismo medieval en occidente desde el Concílio de Nicea (325) hasta la reforma (princípios del signo XVI). In: PUECH, Henri-Charles, dir. Las religiones constituidas en Occidente y sus contracorrientes. México, Siglo Veintiuno Editores, 1981. p. 108-9; DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão. São Paulo, Companhia das Letras, 1991. p. 75.



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CURANDEIROS E ADIVINHOS: AGENTES DE COESÃO SOCIAL

CURANDEIROS E ADIVINHOS: AGENTES DE COESÃO SOCIAL

JOÃO BOSCO BOTELHO, Doutor Honoris Causa, Universidade Toulouse III – Paul Sabatier.

     “Aliás, as fronteiras entre adivinhação e medicina são tão vagas que não nos surpreenderá encontrar num tratado médico um prognóstico aventureiro e, num tratado de adivinhação, um diagnóstico médico pertinente” (CARLIER, Jeannie. Adivinhação. Mythos/Logos. Sagrado/Profano. Enciclopédia Einaudi. Portugal. Imprensa Nacional. Casa da Moeda. v. 12. p. 35. 1987).

     A história, mesmo quando abordada como pretensa sucessão imparcial de fatos, está repleta de dados confirmando a existência, desde tempos imemoriais, de curadores e adivinhos. A maioria dos registros está construída na polaridade desprezando as relações sociopolíticas.                

     Entendendo o papel social dos curadores e adivinhos situados em contexto mais amplo, é possível estendê-los também sob o enfoque dinâmico dos conflitos entre grupos, na ocupação dos espaços sociopolíticos, para que seja possível compreendê‑los como agentes de coesão social.  

     Então, cabe a pergunta: curadores distantes dos processos formadores administrados pelos Estados e adivinhos, têm qualidades especiais ‑ o dom ‑ que os distingam de outras pessoas? (BOTELHO, 1988, p. 113-129).

     Essas complexas relações compõem parte do conhecimento historicamente adquirido: o reconhecimento coletivo da existência de homens e mulheres com capacidades especiais, de possível natureza transcendente, para curar e adivinhar, intermediando a vontade das divindades dominantes em determinada cultura.

       Permanece sem resposta a indagação: esse dom existiria?

     Enquanto não temos outra resposta, continua prevalecendo o sentido bíblico, amplamente difundido entre incontáveis crentes de muitas ideias e crenças religiosa servindo como instrumento de poder à catequese:

Tg, 1, 17: Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das Luzes;

Eclo, 38,1-2: Rende ao médico as honras que lhe são devidas, por causa de seus serviços. Pois é do Altíssimo que vem a cura, como um presente do rei. A ciência do médico o faz trazer a fronte erguida, ele é admirado pelos grandes.

     Desde os primeiros registros, muitas linguagens guardam solenemente registros desse enorme poder porque é possível identificar intrincada relação de dependência entre essas pessoas especiais, aos olhos e ouvidos coletivos, em diversos segmentos sociais nas comunidades onde atuavam.  

     Esse nó, relacionado com a capacidade humana em abstrair o pensamento para enfrentar a doença e o futuro, está envolvido no pro­cesso da ligação humana com o transcendente através da experiência religiosa com o sagrado (BOTELHO, 2000. p. 93-113). 

     A maior parte da comunicação religiosa em torno dos curadores e adivinhos está construída por meio da regra binário do prêmio-castigo. A saúde e a bonança os prêmios pelo cumprimento das ordens, a doença e a desgraça, os castigos pelas desobediências. Por esta razão, o aliado ao poder dominador que curasse a doença e previsse os infortúnios, representava a divindade dominante. Ao contrário, quem não reproduzisse o poder, mesmo que sarasse e adivinhasse com a mesma competência, era identi­ficado à divindade do inimigo, sem credibilidade.  

     Essa constatação ficou clara a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontrados nos sítios arqueológicos assírios e babilônicos, ao esclarecer as palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento com significados semelhantes (Le Goff, 1987, 271).  

     É também possível evidenciar que os curadores e adivinhos, em muitos contextos históricos, exerceram funções equivalentes na organiza­ção social. É por esta razão que os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde os primeiros registros.  

     É possível pressupor que a posse do dom oferecia mais poder a quem o possuía, colocando‑o em destaque na comunidade, aparecendo nas narrativas intermediários da vontade divina.  

     A outra possibilidade acontecia quando o po­der, nas suas diferentes manifestações de força, tentava impor outras con­cepções escatológicas, como etapa da luta entre dominador e dominado.

       A linguagem do dominador para manter o projeto político de mudança do antigo por outro recente é de fundamental importância porque, de modo transparente, a mensagem de esperança requerida pelos anseios coletivos anteriores à conquista. Só assim será competente para seduzir e minimizar a resistência no povo conquistado. 

     Nas circunstâncias que seguem o jogo de força entre conquis­tador e conquistado, a resistência nasce e se manifesta na razão inver­sa da sedução exercida pelas novas propostas de vida e boa morte ao fazer surgir outros conceitos de salvação pessoal e coletiva.        

     A relação do poder dominante com as ideias e crenças religiosas é caracterizada pela tendência marcante, sempre que possível, para subs­tituir o conjunto das crenças do povo subjugado. Quando essa alternati­va se torna impossível de ser realizada em curto prazo, são impostas as alianças militares e culturais, predominantemente por meio de sincretismo religioso.  

     Alguns reis citados no Antigo Testamento, como Baal e Astarte (Jz 2, 13), cultuados na Mesopotâmia, foram identificados pelo judaísmo como curadores e adivinhos representantes da divindade inimiga porque não eram alinhados ao monoteísmo.

     A História mantém alguns exemplos de tentativas de substituição das crenças e ideias religiosas.

     A dura condição de vida imposta aos povos conquistados, pelos monarcas pré‑cristãos, contribuiu ao aparecimento de vários heróis míticos de salvação durante a dominação, sobretudo, o romano na Palestina.  

     Parte do surgimento do cristianismo pode ser inserido nesse contexto, onde muitos povos, desgastados com as suas antigas crenças, foram buscar na nova mensagem cristã as forças da libertação.                  

     O processo de substituição cultural nunca acontece em linha reta. É efetuado em dois momentos distintos: a desmoralização do antigo e a substituição pelo novo. A complexidade aumenta no embate das forças de pressão e contrapressão dos grupos que digladiam para ocupar os espaços. Todavia, é somente no segundo instante que a conquista se consolida, quando surge o herói mítico de salvação para satisfazer as aspirações coletivas.          

     A mensagem cristã de libertação modificou a estrutura sociopolítica do Ocidente. Quase dois mil anos depois, continua exercendo sedução irresistível, capaz de penetrar profundamente no sentimento de liberdade e justiça.  

     De acordo com os Evangelhos, Jesus Cristo veio como o filho de Deus, com poderes de curar e ressuscitar para anunciar a nova mensagem escatológica.  

     É claro que não podemos deixar de pensar na existência de outras condições sociopolíticas para sedimentar a incrível sedução que acompanhou a mensagem salvífica anunciada pelo cristianismo primitivo.  A miséria tinha atingido um patamar insuportável para o povo ouvinte das primeiras mensagens cristãs. A popula­ção do Império Romano, no tempo do Imperador Augusto, é calculada em torno de 65 a 70 milhões, somente próximo de quatro milhões, eram cidadãos romanos.  

     Na Mesopotâmia e nas populações do Crescente Fértil, durante muitas gerações, as oposições foram impiedosamente esmagadas pelo poder domi­nador. A resistência construiu artifícios de simulação, quase sempre refugiadas em guetos, onde a organização social rígida era imperativa para a sobrevivência do grupo.

     As comunidades judias faziam parte desse bizarro mosaico de mentalidades, reproduziram ao longo de três mil anos, as experiências sagradas através de três elementos de coesão social: a fé monoteísta, a sinagoga e o sábado. Esse conjunto, em grande parte oriundo da memória oral, foi transcrito aos livros sagrados (Tora e Talmud) e utilizados como instrumento de organização social. 

     Aquela tradição vivia a religião de fé monoteísta e a espe­rança no futuro capaz de modificar o intolerável jugo estrangeiro. A promessa de Deus aos profetas transformou os hebreus no povo do futuro, que desfrutaria da terra prometida farta de leite e mel. Assim o judaísmo rompeu com o tempo cíclico e estabeleceu a crença no tempo final.      

     É também razoável entender que as ideias e crenças religiosas se manifestam de modo sincrético, sem que se possa estabelecer limites precisos aonde começa certa expressão de religiosidade e termina a outra. O cristianismo primitivo, nascido no seio das massas populares perseguidas pela implacável dominação romana, foi aquecido pelas crenças mais antigas do judaísmo que continuava esperando o herói mítico de salvação (Jo 1,49): “Então Natanael exclamou: Rabi, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel?”     

     Ainda nesse ponto da história, o cristianismo tem sido manifestação religiosa de povos oprimidos, desesperados para minorar os sofrimentos, pleno de sincretismos, onde os curadores e adivinhos de todos os matizes desfrutavam de espaços reconhecidos. Mas, não só, a mudança tornou-se indispensável. Os primeiros padres da cristandade, artífices do processo de substituição do velho pelo novo, deslocaram grande parte da antiga escato­logia judaica e passaram com nitidez de uma concepção coletiva para valorizar a confissão a Jesus como única salvação.     

     Com a passagem de religião dos desprotegidos, começou a utilizar a estratégia política semelhante à do judaísmo, iniciando a perseguição raivosa contra todos curadores e adivinhos não alinhados com o cristianismo (At 16, 16‑18), culminando com o brutal assassinato de milhares de pessoas nas fogueiras de lenha verde acesas pela insanidade coletiva comandada pela Inquisição.          

     O processo de cristianização abandonou os cuidados coletivos com a saúde, alimentação e higiene recomendados pelos livros sagrados do judaísmo. Como não houve tempo para sedimentar outras regras, a maior parte das populações ficou sem parâmetros para enfrentar as dificuldades resultantes da urbanização desordenada.

        Esse conjunto sociopolítico e religioso, em especial o castelo e as catedrais gigantescas concentrando os poderes político e religioso, contribuiu ao agravamento das epidemias que castigaram a Europa, durante parte da Idade Média, em especial a peste negra que matou em torno de cem milhões de pessoas, entre os anos de 1347 e 1351.  

      No Brasil colonial, a força dos núcleos de resistência à substituição das muitas ideias religiosas e línguas, tanto dos elementos coloniais quanto dos numerosos grupos étnicos indígenas e dos escravizados, imposta pelo Igreja, em diferentes períodos, seguiu as tendências das quatro tradições religiosas, lideradas pelos próprios agentes atuantes simultaneamente como curandeiros e adivinhos, combatidos pelo poder dominador colonial de acordo com os componentes das tensões sociais:

1. Indígena: pajé. Esteio da coesão tribal, apesar de ter sido brutalmente desmoralizado pela sanha colonizadora durante quatro séculos, continua resistindo nos confins das florestas.  

2. Africana: pai‑de‑santo, para burlar a fiscalização e evitar os castigos desumanos, recorreram ao sincretismo.

3. Igrejas cristãs: padre.

          O padre salesiano Alcionílio Bruzzi Alves da Silva (SILVA, 1977, p. 250), depois de conviver du­rante mais de duas décadas num povoado da etnia Tukano, no Amazonas, é testemunha viva desta resistência: “…o pajé, representa o mais elevado nível intelectual do povoado indígena, não só, é o zelador pela observância das leis da tribo…Ele é, pois, o maior opositor da assimilação da nossa cultura por parte dos silvícolas”.      

                 A Igreja ao combater sistematicamente os curadores e adivinhos, nascidos das tensões sociais e sem compreendê‑los como agentes de coesão social, não consegue processar linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos nascidos nas contradições, em especial, do subdesenvolvimento, em parte fortalecendo as igrejas neopentecostais e contribuindo ao acelerado esvaziamento das Igrejas.

     Do outro lado, as igrejas neopentecostais divulgando mensagens sedutoras promovendo as sessões de curas e catarses ao som dos cânticos de louvor de milhares de fiéis. Com essa estratégia, penetram com maior facilidade na vontade popular e ocupam os espaços sociopolíticos nascidos do desencanto, da insatisfação e miséria.       

     Os curandeiros e adivinhos tornaram‑se elementos de coesão social ao aperfeiçoarem o trato com o sagrado, resistir às conquistas e impulsionar à liberdade.

REFERÊNCIAS

BOTELHO. João Bosco. Os limites da cura. São Paulo. Scortecci-Plexus ed. 1998. p. 113-129.

­­­______. O deus genético. Manaus. Editora Universidade Federal do Amazonas. 2000. p. 93-113

LE GOFF, Jacques. Pecado. Portugal. Casa da Moeda. Enciclopédia Einaudi 12. 1987. p. 271. SILVA, Alcionílio Bruzzi Alves da. A civilização indígena do Ualpés: observações antropológicas etnográficas e sociológicas. 2 ed. Roma. Libreri

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