ABORTO COMO MÉTODO ANTICONCEPCIONAL

João Bosco Botelho

Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

                        É do conheci­mento público o grande número de grávidas, especialmente, jovens morando nas periferias urbanas, que procuram as mater­nidades públicas em trabalho de aborto incompleto.  A maioria é consequência do uso de misoprostol ou manuseio da cavidade uterina com instrumentos contaminados.

                        Já chegam aos hospitais com hemorragia e infecção, algumas em risco de vida.  Quando inquiridas, negam a intenção abortiva pelo medo das represálias.

                        Para compreender o problema de tamanha gravidade é necessário refletir, sem julgamentos e preconceitos.

                        É possível começar perguntando: o que se mostra tão sedutor capaz de impulsionar à atitude que pode causar morte?

                        Análises realizas em países onde a atenção básica à saúde é competente mostram que os indicadores socioeconômicos não são os únicos responsáveis.

Dois dos mais antigos textos legislando a ação médica, controlada pelo poder laico, o Código de Hamurabi, do século XVII a.C., e o Código de Esnuna, em torno do ano 1825 a.C., não fazem referência ao assunto.

                        O aborto, como método anticoncepcional, sob a permissão de autoridades ou realizado ao arrepio das leis, continua sendo questão complexa, contudo, com fontes confiáveis desde o escravismo greco-romano.

                        Os registros mostram que pouco importava à mulher daquelas épocas, o momento propício para se desembaraçarem de criança indesejada. Da mesma forma, o univer­so mítico do politeísmo, no Oriente e Ocidente, não empunhava restrição.

                        A interrupção intencional da gravidez não é citada nos papiros médicos. Todavia, no papiro de Ebers, existe método para tratar as hemorragias uterinas, sem especificar se era ou não consequência do aborto.  

                        É interessante assinalar que tanto o Antigo Testamento (AT) quanto o Novo Testamento (NT), contendo inúmeras referências sobre cuidados à saúde e organização familiar, não citam a prática abortiva. É como se esse acontecimento, que deveria acontecer, não tivesse importância à coesão social.  A Bíblia não condena nem aprova ao aborto como método anticoncepcional.  

                        A leitura do Juramento de Hipócrates mostra, no primeiro momento, a clara tendência antiabor­tiva dos médicos gregos da ilha de Cós: ” …Não darei venenos mortais a ninguém, mesmo que seja instado, nem darei a ninguém tal conselho e, igualmente, não darei às mulheres pessário para provo­car aborto”.

                        O padrão ético desse documento surgiu para ordenar os conhecimentos médico‑sociais acumulados pelas Escolas de Knido e Cós, na Grécia antiga, entre os séculos V e IV a.C.

                        Mesmo não existindo dúvida da autenticidade da mensagem hipocrática, é perfeitamente coerente o raciocínio de que pode não ter sido somente a conduta do médico o motivo principal.

                        Não é nenhum absurdo pensar que a autoproteção do grupo, oriundo das duas escolas, tivesse sido o imperativo maior para distingui-los dos curadores populares, detentores de conhecimentos considerados perigosos e não recomendáveis à parte domi­nante da sociedade grega.

                        É possível que a indução do aborto pelos curadores populares, rejeitados pela mentalidade platônico‑hipocrática em ascensão, estaria entre as que provocavam a morte da paciente pela hemorragia e infecção, como todas as práticas que determinavam a morte do doente, eram enfaticamente rejeitadas pelos médicos das Escolas de Knido e Cós  

                        Essa abordagem audaciosa é reforçada pela certeza de que havia   indulgência, entre os autores reconhecidos da antiguidade clássica, para a pratica do aborto, perceptível em Aristóteles (Política, VII, 4), aconselhando a interrupção da gravidez frente às necessidades médicas, desde que o embrião não tivesse recebido o sentimento e a vida.

                        Esse marcante impedimento ao aborto como prática anticoncepcional, chegou ao cristianismo dos primeiros tempos.  A mais antiga e clara referência cristã antiabortiva está no Didaqué, manual ético‑moral, escrito nos anos 100: “Não matarás criança por aborto, nem criança já nascida”.

                        Existe a possibilidade de que pode ter sido escrito por religiosos egípcios monoteístas, com ideário semelhante aos dos cristãos.  

                        Não é aceitável supor que as complexas recomendações contidas no Didaqué, divididas em preceitos ético‑morais e normas de celebrações, não tenham sido elaboradas como proposta para modificar o cotidiano de parcela organi­zada daquela população.  

                        Essas regras também influenciaram o filósofo cristão Tertuliano, do século II. Nos seus escritos abandonou a antiga abertura aristotélica e adotou a posição antiabortiva absoluta: “É homicídio antecipar ou impedir alguém de nascer. Pouco importa que se arranque a alma já nascida, ou que se faça desaparecer aquela que está ainda por nascer. É já um homem aquele que virá”.  A querela tertuliana não foi suficiente para resolver as diferenças entre os fetos animados e inanimados levantada por Aristóteles.  Apesar do Concílio de Elvira, no ano 305, ter ameaçado de excomunhão todas as mulheres que abortassem após adultério, essa questão apaixonou intelectuais do século IV.

                        Mesmo com o freio imposto pela moral cristã, a tradição permissa abortiva também dominou o cotidiano no século IV.

                        O pensamento dos doutores da igreja , em especial, São Jerônimo (331‑420), um dos quatro grandes doutores da Igreja, na correspondência endereçada à Algasia, argumentou que “os sêmens se formam gradualmente no útero e não se pode falar de homicídio antes que os elementos esparsos recebam a sua aparência e seus membros”. Contudo, em outra carta, o monge de Belém considerou as mulheres que escondiam a infidelidade conjugal com o aborto como culpadas de triplo crime: adultério, suicídio, assassinato dos filhos. O suicídio foi incluído possivelmente, porque a morte, durante a gestação, não era acontecimento incomum.

                        De forma semelhante, Santo Agostinho (354‑430) mantém a separação etária dos fetos: “Pois uma vez que o grande problema da alma não pode ser decidido apressadamente com julgamentos rápidos e não fundamentados, porque a LEI não prevê que o ato seja                 con­siderado homicídio, uma vez que não se pode falar de alma viva num corpo privado de sensações, numa carne não formada e, portanto, ainda não dotada de sentidos.”

                        Em algumas partes do medievo europeu, as elaborações teóricas não saíram dos muros das abadias. O reforço para melhorar o controle social, entre os séculos VI e VII, veio com o sincretismo entre o cristianismo e as crenças do politeísmo romano.

                        Surgiram as festas cristianizadas para saudar a vida concebida pela vontade de Deus. A da Natividade do Senhor foi uma das primeiras, fixada no fim do século IV, iniciando os atributos de sacralidade à todas as concepções. Foi seguida da Festa da Natividade, celebrando a imaculada Conceição de Maria, no dia 8 de dezembro, e a da Anunciação, ou “festa da concepção de Cristo”, respectivamente nos séculos VI e VII.

                        Essas comemorações contribuíram para impor simbolo­gia sagrada à gestação. Assim, podem ter iniciado complexo processo de punição para as quem ousasse interromper o ato de Deus: a gravidez.  

                        As dúvidas sobre a data correta para o início da anima­ção do feto atravessaram os séculos e chegaram a Santo Tomás (12225 – 1274). O tomismo sustentou claramente que a animação não ocorria na concepção e que só o aborto de um feto animado era homicídio.

                        A força da tradição e o tomismo influenciaram decisivamente no afrouxamento da proibição. O papa Gregório XIV, apoiado no argumen­to de muitos teólogos, revogou a Bula de Xisto V (1588) que punia civil e canonicamente todos os que praticassem o aborto    em       qual­quer idade fetal.

                        O Direito Canônico, no período da industrialização, no século XIX, forçou o retrocesso da Igreja aos rigores do cristianismo primiti­vo do Didaqué, possivelmente entre dois componentes inesperáveis: teológico e político.

                        O primeiro, promovido pelo Papa Pio XI, acabou com a distinção multissecular de feto animado e não animado. O segundo, relacionado com a industrialização crescente do ocidente e a imperativa necessidade de mão de obra interferindo nos preços, já que a prática de aborto como método anticoncepcional alcançava muito mais as mulheres pobres, das periferias urbanas.

            O famoso discurso papal, dirigido aos obstetras, em 1951, foi enfático ao atribuir vida intrauterina plena antes do nascimento e condenar o aborto enquanto morte do inocente: “…Todo ser humano, até mesmo as criancinhas no seio materno, recebe o direito à vida diretamente de Deus … Não há nenhum homem, nenhuma autoridade, nenhuma ciência, nenhuma indicação médica, canônica, social, moral, que possa exibir título jurídico válido para dispor direta e deliberada­mente de uma vida humana inocente … visando sua destruição”.

                        O documento conciliar Gaudium e Spes, considerado progressista em muitos aspectos da ação social da Igreja, manteve a interdição incondicional: “A vida, uma vez concebida, deve ser tutelada com o máximo de cuidado e o aborto como o infanticídio são delitos abomináveis”.

                        Algumas passagens do Antigo Testamento (Gn 1, 14; 9, 5‑6 e Ex 20, 13) e do Novo Testamento (Mc 12, 27; Lc 1, 41‑44 e Mt 1, 18) valorizando a vida situando Deus como o único Senhor da vida e da morte, foram utilizados pelos teólogos Da Igreja, para construir as restrições ao aborto como método anticoncepcional.  

                        Após quase dois mil anos de limitações impostas pela Igreja, a estima­tiva do número de abortos provocados por ano no mundo ultrapas­sou, em 1989, 40 milhões. Dez por cento desse total, 4 milhões, foram feitos no Brasil, causando a morte de trezentas mil mulheres.

                        Nas ruas dos grandes centros urbanos brasileiros já perambulam mais de 500 mil menores prostitutas (Folha de São Paulo, 25. 10. 90). Assim não podemos estranhar a denúncia do ­Conse­lho Nacional dos Direitos da Mulher (Jornal do Brasil, 08. 03. 91) de que mais da metade dos abordos registrados são praticados em condições precárias de higiene e entre meninas de 14 a 19 anos de idade.

                        A Organização Mundial de Saúde publicou que o Brasil já tem maior número de abortos do que de nascimentos (Jornal do Brasil, 07. 03. 89).

                        Os estudos da OMS e de outras entidades de direitos humanos, mostram a mortalidade e morbidade atenuadas com a melhor assistência do Estado.

                        Apesar de a evidência histórica de a proibição teológica pouco influen­ciou as autoridades eclesiásticas brasileiras alinhadas incondicionais ao Vaticano, continuam ignorando a tragédia social das milhares de mulheres que morrem em consequência do abortamento clandestino e continuam mantendo contingente articulado para sustentar a proibição absoluta, semelhante àquela do cristianismo primitivo.        

                        Particularmente importante na opinião pública é espaço ocupado pelo clero conservador, representado pelos cardeais Dom Eugênio de Araújo   Sales (In memoriam) Dom Lucas Moreira Neves (In memoriam) e Dom José Freire Falcão (In memoriam).  

                        Dom Eugênio de Araújo   Sales, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, (Jornal do Brasil, 06. 04. 91), fechou questão com inflexibi­lidade irremovível, contestada pelos grandes doutores da Igreja durante mais de mil anos:” A inviolabilidade e o direito à vida, desde a concepção até a morte, são expressões da própria inviolabilidade da pessoa”.   

                        Foi a pressão exercida por essa parte do clero conser­vador que forçou o então governador Leonel Brizola a retirar, em 1985, da Assembleia Legislativa o projeto de lei regulamentando a assistência médica pública ao aborto consequente ao estupro.

                        A tendência pró‑aborto, iniciada na Europa, nos anos setenta, é hoje mundial. Nos últimos quinze anos, pelo menos vinte países modificaram as suas leis.  

                        Na Itália, o mais católico da Europa, a legalização do aborto provocou muito conflito. Só depois de cinco anos de debates no Parlamento, em 1975, e com a ajuda da “frente laica”, reunindo os representantes de todos os partidos políticos, foi aprovada a mudança. O plebiscito, realizado no papado de João Paulo II, mostrou que 70 % dos italianos aprovaram a lei.

                        Baseado nestas reflexões e lendo as notícias  na imprensa sobre o aumento do número de gravidez interrompida voluntariamente, nos países cristãos, é possível concluir que:

– As proibições teológicas, lideradas pelo cristianismo, não ­modi­ficaram, em quase dois mil anos, o comportamento das mulheres quando decididas utilizar o aborto como método anticoncepcio­nal.  

– Nas sociedades com problemas de superpopulação, o estímulo aberto ou disfarçado ao aborto pode ser transformado numa forma de controle populacional utilizada pelo poder político dominante;

– A herança social acumulada não é modificada facilmente pela interdição religiosa.

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RELAÇÕES MÉDICO-MÍTICAS (RMM)

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

As relações-médico-míticas (RMM) estão contidas nas memórias-sócio-genéticas (MSGs), em sequências específicas de ADN, processadas  durante a humanização. Em combinação com as outras partes da herança genética, respondem  pelos circuitos cerebrais específicos identificadores dos seres-não-tempo (SnT) como uma das opções, no mundo das idéias, para conter os riscos à saúde ou à sobrevivência dos seres-tempo (ST), atuando em última instância, como um instrumento, extremamente potente, para superar os limites da cura.

Os sentimentos evocadores de paz e esperança, gerados pelas RMM, transcenderam no tempo e chegaram  a nós vivificadas tão intensamente que fica quase impossível dissociá-las do cotidiano da prática médica.

A própria data de comemoração do dia do médico –  o 18 de outubro – corresponde na mitologia grega, o dia no qual o deus médico Asclépio, filho de Apolo, o deus da medicina grega, era celebrado na Grécia Antiga, há 2.300 anos.

Nunca é demais repetir que a grandeza biológica do material genético humano sobre a de todas as outras espécies do planeta se completa com o criação dos SnT e a  consequente esperança no renascimento após a  morte.

Entre os mais famosos SnT taumaturgos, estão nos panteões sagrados:

 

  1. Assírio-babilônico:

 

  1. Marduk, o grande deus curador;
  2. Nabu, deus das ciências e da arte de curar;
  3. Sin, deus das plantas medicinais;
  4. Istar, deusa da libido;
  5. Ninchursag, deus ligado a oito divindades, cada uma com poder de curar uma doença específica;
  6. Ninurta, deus dos médicos;
  7. Gula, mulher de Ninurta;
  8. Ningischzida, filho de Ninurta, representado pelas duas serpentes enroladas no bastão;
  9. Sachan, a deusa-serpente

 

  1. Egípcio:

 

  1. Thoth, o deus que curou Horus da picada do escorpião e tratou das feridas de Horus e Set;
  2. Isis, a deusa que sarou Ra;
  3. Sechmet, deusa das doenças das mulheres;
  4. Set, o deus que espalhava e recolhia as epidemias;
  5. Imhotep, filho de Ptah, o deus da medicina;
  6. Menes e Zoser, reis curadores.

 

  1. Indiano:

 

  1. Ahura Mazda, deus da luz, do bem e criador de todas as coisas, sustentado pelos seis Amesha Spenta sagrados que representam a piedade, a bondade e a justiça;
  2. Angra Mayniu, o deus maléfico que luta pela posse do mundo;
  3. Ameretap, a deusa da longa vida e guardiã do jardim das plantas medicinais;
  4. Thrita, Thraetona e Ahriman, deuses curadores;
  5. Mithra, deus ligados aos ritos iniciáticos com o sangue e à comunhão do pão com o vinho;

 

  1. Grego;
  2. Apolo, o deus inventor da arte de curar;
  3. Asclépio, filho de Apolo, o deus da Medicina e era representado por uma serpente enrolada no bastão;
  4. Hígia, filha de Asclépio, a deusa da saúde perfeita;
  5. Panacéia, filha de Asclépio, a deusa que sabia dos remédios para todas as doenças;
  6. Afrodite, a deusa que curava as doenças da sexualidade;
  7. Artemis, a deusa protetora das mulheres e das crianças;
  8. Romano:

 

  1. Marte, o grande curador;
  2. Febris, a deusa das febres adquiridas nos campos de batalha;
  3. Mephitis, a deusa das febres da cidade;
  4. Minerva, a protetora da mulher e da criança;
  5. Judaico-cristão:

 

  1. O Deus único, o senhor da vida e da morte, da saúde e da doença;
  2. Personagens proféticos curadores do Antigo Testamento;
  3. Jesus Cristo, filho de Deus, o maior dos tauma-turgos;
  4. Os personagens possuídoras do dom de curar e adivinhar descritas no Novo Testamento.
  5. Os santos e as Santas curadores da tradição cristã.

 

A partir das combinações contidas no genona, a situação de angústia criada pela fragilidade do ST frente a morte prematura ou a doença fora de controle, toca simultaneamente, em dois níveis principais, as respostas neuro-endócrinas responsáveis pelo afrouxamento das tensões no corpo:

 

  1. Acionando as mudança nos níveis de hormônios e do metabolismo interno, como por exemplos, a secreção das endomorfinas nas terminações nervosas, a secreção gástrica e os hormônios da glândula supra-renal, entre muitos outros;

 

  1. Ativa os circuitos específicos responsáveis pela RMM, situados no sistema nervoso central, que formam as imagens tranquilizadoras dos SnT taumaturgos.

 

Os mecanismos atuam como instrumentos para diminuir a DP e criar condições físicas e psiquicas que facilitam o enfrentamento do risco.

O  lento processo que envolveu as práticas de cura com o mito, no passado muito distante, notadamente, no Paleolítico Superior, deixou registros preciosos nas pinturas rupestres.

Merecem destaquem as primitivas relações míticas que os nossos ancestrais  estabeleceram em dois momentos fundamentais do processo de humanização:

 

  1. Relações míticas dos nômades caçadores-coletores:

 

  1. Com animais;
  2. Com os astros e fenômenos celestes.

 

  1. Relações míticas dos sedentários agricultores-coletores com a terra e o vegetal:

 

 

  1. Relações míticas dos nômades caçadores-coletores:

 

  1. Com os animais

 

Essa complexa e compeensível associação de poder e dependência  gerou a  crença no poder do animal.

Mesmo antes da linguagem articulada, a voz humana era capaz de transmitir não só a informação, ordens e desejos, mas também, criar coletivamente um universo imaginário de relações do homem com ele mesmo e com o meio, fazendo do desconhecimento a pedra angular da formação das suas relações sociais.

É possível deduzir que a crença no poder animal, ainda hoje aceita em numerosos grupos sociais, tenha surgido nessa época, quando alguns animais desempenhavam importância fundamental no ritmo da vida do homem. Por esta razão, o animal adorado variou de acordo com a situação geográfica da comunidade. Em alguma foi o urso, em outras, o bisão e a rena.

As descobertas arqueológicas encontraram vários crânios de diversos animais, principalmente de ursos, em cavernas pré-históricas colocados em lugares de destaque que sugerem tratarem-se de altares primitivos.

Os estudos paleoanropológicos reforçaram a certeza de que os nossos ancestrais distantes caçadores-coletores mantiveram algum tipo de adoração mítica pelo  poder animal.

No fundo do lago de Stellmoor, perto de Hamburgo, na Alemanha Ocidental, foi encontrada uma  estaca de pinho com um crânio de rena na sua porção mais alta e um tronco de salgueiro  com mais de três metros de comprimento, grosseiramente esculpido, percebendo-se a cabeça e o pescoço de um personagem humano, ambos datando de oito milênios.

A gravura paleolítica de uma mulher grávida, na fase final da gravidez, sob uma rena e as pinturas rupestres dos médicos-feiticeiros de Afvalingskop e da gruta de  Trois Frères são alguns  exemplos da crença numa da troca de poder entre homem e animal e vice-versa.

É lícito supor, que no primeiro caso acima, tenha ocorrido alguma forma de dificuldade na resolução natural do parto. A gravura pode ter sido feita memorizar o significado da transferência simbólica da força do animal após a efetivação do parto

Os médicos-feiticeiros da Ásia Central e da França, do segundo exemplo, estão travestidos na pele dos animais em movimento de dança, lembrando, sob muitos aspectos diferentes, as RMM ainda existentes em diversas partes do mundo,mais especificamente, o ritual dos bisões elaborado por grupos indígenas no norte dos Estados Unidos.

A evidência da localização dessas esculturas e pinturas rupestres em locais de difícil acesso, são demonstrativos que se tratavam de lugares incomuns  para o uso habitual.

Um dos exemplos mais marcantes é a caverna de Le Tue d’Audoubert, na França. Neste sítio, foram encontrados dois bisões esculpidos em argila, cada um deles com quase um metro de comprimento, em espécie de altar, cercados por centenas de impressões dos pés de adultos e crianças moldados no solo argiloso. Mesmo hoje, com toda a facilidade do deslocamento, utilizando balsas infláveis e a luz elétrica, é difícil o acesso a este altar primitivo.

Do mesmo modo, também é possível associar a suposta prática curativa, desenvolvida na pré-história, com os desenhos em raios X, da mesma época, que mostram o esqueleto e os órgãos internos dos animais.

Estes desenhos são encontrados em número expressivo nos sítios arqueológicos da França, Noruega, Índia, Malásia, Nova Guiné e Austrália. Os estudos comparativos levam a conclusão da enorme possibilidade de que as idéias e crenças  religiosas, predominante no paleolítico, estava impregna-da das RMM.

A história oral, sobrevivente dos curadores autoctones, da Austrália, Nova Guiné e Malásia, afirmam qque somente o feiticeiro, possuidor do dom e graças a sua visão sobrenatural, é capaz de ver através da pele.

Este raciocínio pode ser facilmente transportado até hoje para explicar, historicamente, a visão clínica do médico moderno como sendo capaz de chegar ao diagnóstico com um simples olhar, não utilizando qualquer recurso lógico do conhecimento. Esta capacidade é reconhecida também como o dom e muito valorizada como símbolo de competência do curador.

 

  1. Com os astros e fenômenos celestes.

 

Essa complexa relação mítica foi a  responsáveis pela associação entre o poder especial dos corpos celestes, visíveis e intocáveis no firmamento, e os SnT.

As comunidades do Neolítico ou as anteriores a ele, por não possuírem estratificação social, tinham na busca pela sobrevivência e na explicação dos fenômenos naturais, grande parte da sua atenção. A preocupação pelo conforto físico e em aumentar o tempo da vida deveriam estar entre elas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva.

A demonstração inquestionável da existência no Pa-leolítico superior de sistema simbólico baseado nas fases lunares é extremamente importante para a compreensão do todo nas relações históricas do homem com a sua compreensão da saúde-doença e vida-morte. Este sistema de relação do homem com o tempo-espaço forneceu as bases para a compreensão  pelo homem pré-histórico dos processos naturais repetitivos e renováveis como a reprodução do homem e dos vegetais, o  movimento de cheia e vazão das águas, as estações do ano, a morte e o imaginável renascimento relacionado ao nascente do Sol.

A partir desse ponto ao aparecimento dos ritos de iniciação e da guarda dos segredos deve ter sido um passo curto.

A dança circular é um dos exemplos da existência de ritos nos grupos sociais paleolíticos. Incontestáveis marcas em solo argiloso foram identificadas em alguns sítios arqueológicos. Estas marcas de pés de adultos e crianças formando círculos bem definidos, ficaram definitivamente impressos no chão como testemunhas caladas do universo mítico-religioso dos nossos ancestrais.

Com o início das especializações sociais, isto é, a identificação expontânea no seio do grupo social de afinidades pessoais, é correto o pensamento de que os especialistas do sagrado começaram a aparecer, detentores de conhecimento acumulado e específico para intervir na explicação do fenômenos visíveis nos céus relacionam-os com os fatos do cotidiano.

É possível que esses especialistas da cura tenham sido os primeiros que intervieram no corpo humano para mudar o curso de uma doença ou de um comportamento excludente. A prova arqueológica seriam um dos mais fantásticos objetos de busca da saúde pelo homem – os crânios trepanados – no período Neolítico, há mais de 10.000 anos.

Existem dezenas de crânios que foram abertos cirurgicamente e algumas pessoas que foram submetidas a estas cirurgias sobreviveram  longo tempo, o suficiente para que as bordas do osso cortado se regenerassem parcialmente.

Essa atitude médica do homem neolítico estava impregnada de sentido mítico-religioso, semelhante ao ainda hoje encontrado entre os nativos do arquipélago Bismark, onde essa cirurgia ainda é realizada com o objetivo  de retirar os demônios e os maus espíritos dos doentes que apresentam algum tipo de alterração de comportamento.

 

 

  1. Relações míticas dos agricultores¾coletores com a terra e o vegetal:

 

Na proporção do aperfeiçoamento da linguagem, au-mentou a instrumentalização médico-mítica dos nossos an-cestrais. As forças resultantes determinaram profundas al-terações nos registros genéticos e os consequentes acréscimos nos circuitos cerebrais identificadores das respostas do ST frente as angústias da incerteza da vida.

Os elementos sagrados continuaram formando imagens simbólicas interagindo homem-animal-astro e  acompanhando o homem na trajetória de conquista do espaço, que começou a ser concretizada ao lado dos rios e lagos férteis.

Foram sobretudo os iniciadores da cultura natufiana, que optaram pela vida francamente sedentária, ao contrário dos seus antecessores biológicos que mantiveram, durante milhares de anos, o nomadismo.

Essas transformações sociais ficaram conhecidas como Revolução Agro-pastoril do Neolítico. Sabe-se que elas foram produtos de combinações geográficas e climáticas circuns-tanciais específicas. Porém, um dos fatos mais interessantes foi que diferentes grupos sociais passaram pelo mesmo processo em épocas  e lugares distintos no planeta.

A Medicina, nessa fase, já estava definida como especialidade social. Por outro lado, a prática médica refletia a irresistível força das MSGs  e incorporava os sincretismos oriundos do passado muito distante.

As centenas de milhares de anos que os caçadores-coletores permaneceram em relação direta com a natureza, deixaram traços bem definidos, na herança genética, na sua nova adaptação ao meio.

Não é demais assegurar que o desenvolvimento da agricultura com produção e excedente, a posse de coisas, a guarda do território e fortalecimento dos laços tribais e consanguíneos determinaram profundas mudanças nas MSGs originada do nomadismo caçador-coletor.

Os mecanismos cerebrais de fuga da DP foram definitivamente alterados. Além de tudo o mais, a agricultura impôs uma divisão de trabalho que interferiu de modo marcante no tipo de doença que o homem passou a ter como uma das conseqüências da modificação dos hábitos sociais.

As relações do homem com o animal – o poder do animal – que predominaram no universo mítico  mesolítico foram modificadas com o aparecimento da agricultura dirigida. A ordem religiosa com o mundo animal é substituída pela sociedade mítica entre o homem e o vegetal. O osso e o sangue são substituídos pela terra e pelo esperma.

A antiga dispersão das idéias religiosas é concretizada em espaço definido, a aldeia. Apareceram os primeiros templos fortemente estabelecidos a partir das idéias religiosas indissociáveis da metalurgia, da urbanização, da realeza e do corpo sacerdotal organizado detentor do conhecimento e capaz de interferir, com a ajuda dos SnT, nas relações saúde-doença e vida-morte e empurrando os limites da cura.

É provável que tenha sido nesta fase do processo de transformação das idéias do homem, que tenha se dado a consolidação da criatividade religiosa, como secundária ao fenômeno empírico do cultivo da terra. Não pode ser afastada a possibilidade de ter frutificada a partir do desenvolvimento da consciência pessoal e coletiva do tempo, identificada no ritmo da vida dos vegetais, como indicador da renovação perene da vida.

O estudo das idéias e crenças religiosas do homem mostra uma quantidade enorme de exemplos em todos os continentes de mito de origem a partir da nova relação do homem com a terra como o existente na ilha do Ceram, na Nova Guiné, aonde do corpo retalhado de uma jovem semi-divina, Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas que oferecem o alimento necessário para as pessoas viverem e a nossa lenda amazônica do guaraná, do vale dos rios Andirá e Maués, na qual o filho da índia Onhiamuacabe é morto e do seus olhos plantados, originou-se do esquerdo o falso guaraná, Uanará-Hopu e do direito o verdadeiro guaraná, Uaraná-Cécé e do corpo enterrado e ressuscitado deu origem ao primeiro maué.

Milhares de anos depois do processo de elaboração dos mitos de origem, surgiram formas sincretizadas, cujos simbolismos estão contidos em estrutura organizacionais muito semelhantes:

No Antigo Testamento, o pão recebeu muitos significados, porém todos estão estritamente atados à sobrevivência e a aliança ao SnT da tradição judaico-cristã: *

 

  1. O dom de Deus e fonte de todas as forças:

 

SI 104, 14 :

 

 

  1. Um meio de subsistência tão essencial que a falta do pão significa falta de tudo:

 

Gn 28,20 $

 

Am 4,6 $

 

Após a consolidação da  cristianismo, no Ocidente, o pão con-tinuou a ter o mesmo significado simbólico:

 

  1. Como o desejo de comer no Reino

 

Lc 14,15: $

 

 

  1. Relação entre o pão e a palavra de Jesus:

 

Mc 6,30 – 40: $

 

 

  1. Culminando no rito da eucaristia

 

Jo 6, 48-52: ”Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Aqui está o pão que desceu do céu para que todo o que ele comer, não morra. Eu sou o pão vivo, que desci do céu. se qualquer comer deste pão viverá eternamente: e o pão que eu darei é a minha carne, para ser a vida do mundo”.

 

A significação dos mitos ao renascimento a partir da nova relação do homem com os vegetais é clara, os alimen-tos são sagrados por derivarem do corpo de uma divindade e devem ser utilizados para a conservação da vida.

Após o fortalecimento do aldeamento se tem comprova-ção da utilização empírica das plantas como agentes interme-diários na busca da saúde, provavelmente como fruto das novas relações míticas do homem com a terra e com o ve-getal.

Esse aldeamento se deu inicialmente, próximo das fontes de água em caráter permanente e em terras férteis. No chamado Crescente Fértil, entre os territórios montanhosos de Israel, Jordânia e Síria, compreendendo os rios Tigre e Eufrates e se estendendo do mar morto ao Golfo pérsico, apareceram as primeiras aglomerações humanas urbanas conhecidas, datando em torno de 10.000 anos.

É certo que a Medicina oficial se desenvolveu nessas cidades ao lado de práticas míticas, envolvendo ritos que se tornaram coletivos e passaram a ser realizados em épocas de festividades e consagrações.

A circuncisão é um dos exemplos. Essa cirurgia deve ter sido praticada no Neolítico de modo muito semelhante ao que apareceu na Mesopotâmia e no Egito, 5.000 anos depois.

Foi a interferência do conceito mítico-religioso – a aliança entre Deus e Abraão – o fator histórico responsável pela forma de circuncisão que temos gravada na história religiosa:

 

Ge 17,9 – ”Disse mais Deus a Abraão: Tu pois guarda-rás o meu pacto, tu e teus descendentes depois de ti. todos os machos dentre vós serão circuncidados. E vós circunda-reis a carne do vosso prepúcio, para que esta circuncisão seja o sinal de concerto, que há entre mim e vós”.

 

A utilização de instrumentos específicos e do vegetal, como fruto da terra cultivada, com o objetivo de facilitar a co-municação com o transcendente e intervir no curso das doen-ças foi consolidada definitivamente na prática médica e serviu para reforçar e institucionalizar  o poder médico oficial – praticado pelo ST – como trabalho intermediário da vontade do SnT  dominante do grupo social.

O uso de plantas alucinógenas pelas populações nativas americanas do Norte e do Sul, constituem outro exemplo dessa utilização instrumental na prática médica. em todos os grupos estudados, apesar de pequenas diferenças  no ritual, o simbo-lismo é exatamente o mesmo. As plantas, como dádivas divinas, são utilizadas para facilitar a comunicação entre o curador e os seres-não-tempo na cura das doenças.

Todas elas Oloiuhqui, Tlitliltzen, Mescal Beans, Teona-nacati, Conocybe, Lycoperdon, Pipiltzintzintli, Peito de Moça, Maikoa, Floripondio, Toloatzin, Estramonio, tabaco, San Pedro, Paricá, Virola, Coca, Epadu, Ayahuasca e a Jurema, são utili-zadas nas RMM de centenas de grupos indígenas nas Américas.

Após a colonização predatória e a cristianização forjada a ferro e fogo pelas hordas européias, o uso das drogas alucinógenas continuou, apesar da implacável perseguição do clero, mas sofreu severas transformações que contribuíram para a desestruturação irreversível do universo mítico dos povos autóctones.

Destituídos das suas RMM de forma brutal, em poucas dezenas de anos, os estímulos das MSGs das populações indígenas ficaram sem resposta adequadas frente à natureza circundante, à História e ao social. Quando esses povos conseguiram diminuir o enfraquecimento determinado pela quebra dos mecanismos de sobrevivência contra DP e DH, já era muito tarde, tornaram-se presa fácil nas mãos  do colonizador europeu.

O empirismo racional também foi e continua sendo utilizado ao longo de milhares de anos ao lado dos métodos mágicos na busca da saúde. Os mais conhecidos e usados foram as massagens, administrações de ervas medicinais sem o prévio conhecimento de seu primeiro ativo, plantas que provocam o vômito e a diarréia, cataplasmas e lavagens in-testinais. O uso destes artifícios está profundamente marca-do na memória coletiva de todos os povos, independente da organização social de cada um deles.

As RMM existentes na atualidade mostram-se tão vivas que fica praticamente impossível estabelecerem-se os limites no tempo. É como se as MSGs impulsionassem as ondas retardatárias, vindas das primitivas relações do homem com o animal e com a terra.

Esse conjunto é um indicativo que oferece suporte à teoria das RMM, contidas nas MSGs, como tendo sido forma-das a partir de marcas específicas na herança filogenética comum, determinadas pela natureza circundante, pela História e pelo social.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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