A TRADIÇÃO GREGA: Medicina Romano-cristã

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Medicina Romana

 

Após a terceira guerra púnica, os romanos consolidaram o vasto império no Mediterrâneo, Nos anos seguintes, uma parte significativa da elite, investiu contra a Medicina grega hipocrática.

O historiador romano Marco Porcio Catão, no século II d.C., expõe a sua opinião na carta escrita as seu filho:

 

“Protege-te dos médicos estrangeiros”.

 

Os conceitos gregos da teoria dos quatro humores foram incorpo-rados às práticas de curandeirismo doméstico que utilizava em larga escala as ervas, os banhos e os vomitórios.

Contudo, nos anos seguintes a pressão social, provavelmente, vinda dos estratos sociais intermediários com poder econômico, forçou a legalização da profissão do médico cas, tanto entre os homens livres quanto nos  escravos.

As obrigações do méÁco

eram estipuladas pelo Estado que pa-

gava os seus serviços profissionais.

Sob o império de Adriano, no sé-

culo II d-C-, os médicos eram dispen-

sados do serviço milita e quase todas

as cidades romanas dispunham de mé-

dico ofiáal. Até hoje, 1800 anos de-

poá, nem todas as cidades do interior

do Amazonas dispõerr de méÁcos e as

que os têm, com raras exceções, pos-

suem a instrumentalização mínima ne-

cwsària para o exercício da profissão.

Em tomo do século IV d-C- a

profissão méÁca foi «veramente fisca-

lizada e foi instituído rigoroso exame

para todos que quisessem exercer a

profissão. O império romano subven-

áonava os estudantes de Mediána.

mas em troca eram obrigados a prestar

assistênáa aos pobm. Os médicos fo-

ram proibidos de praúcar o aborto e

negar o atendimento a qualquer doen-

te, sob risco de castigo corporal e mul-

  1. Nesta mesma época, sob o império

de Ihocleciano, no ano de 300 d-C-,

um éÁto do imperador impunha como

 

condição para enwar na escola de Me-

dicina, a apresentação de certificado de

boa conduta fomecido pelo comando

militar da ádade de origem. Esta práti-

ca.ainda hoje é uÚlimda em alguns paí-

ses da América do Sul e no BraJ<ít era

pràtíca comum anos a~às, o “a., estado

de bons antecedentes” constava dos

documentos exigidos para a concreúzá-

ção de matricula nos cursos superiores,

A difereiiáação entre médicos e

cúurgiòes foi reforçada e Cícero falava

dos médicos verdadeiros, o que corres-

ponderia aos clinicos gerais de hoje.

Em seus vemos, Cícero registrou a es-

pecialidade médica: “Cascelio extúpa

ou cura os doentes; tu Igino, queimas

os elos que irritam os olhos, Éros eli-

mina as tristes cicauúes. dos wrvos e

Herrnes goza de fama de ser o Podalí-

rio das hérnias (.,.)”. .

‘ Os historiadores da Medicina

acreditam que o grande número de es-

pwialistas na Medicina romana te&a

sido em conseqüência não somente dos

progressos técnicos, mas principalmen-

te porque as espwialidades eram mais

lucrativas para quem as exercia. Al-

guns médicos especialistas romanos,

como Stertinio, conseguiu formar ver-

dadeira fortuna como fruto do ~aba-

lho médico.

 

Provavelmente, em conseqüéncia

de abusos nos lucros ~obtidos por al-

guns médicos, no ano de 368 d-C- Va-

lentiniano proibiu que os médicos em-

pregados do Império -recebessem di-

nheiro dos doentes pobres. Respeitan-

do novamente as devidas proporções,

o problema continua na luta dos insti-

tutos de assistência médica dos países

pobres, inclusive no Brasil, pela co-

brança indevida de serviços méÁcos

prestados aos seus segurados.

 

As contradiçòes das relações mé-

dico-paciente são as mesmas ao longo

dos séculos. Na realidade, nâo se pode

atribuir somente aos baixos salários

pagos aos médicos dos países do Ter-

miro Mundo, a r~ponsabilidade destes

acontecimentos.

Todos estes problemas éticos e pe-

cuniàrios não irape&ram o apareci-

mento de grand= figu;as na Medicina

romwia. En~e os médicos romanos,

uru dos quais mais .;e destacou foi Ga-

leno, considerado como o sucessor de

Hipócrates e que iria influenáar decidi-

damente a Medicina medieval.

clàqdio Galena nasceu em Pérga-

mo, na Asia Menor, no ano 130 d-C-

Foi sem dúvida o mais famoso médico

do seu tempo. As suas obras, a maioria

perdida, abordavanl a anatomia, a fi-

siologia, a patologia, a simtomatologia

e a terapêutica. Estas obras foram

compihdm e publimdas em Veneza no

ano 1538 e constituiu o principal livro

de consulta dos méÁcos medievais.

Galena sofreu grande influência da es-

cola eclética, cujo prinápal reprmen-

tante foí ácero,

o outro méÁco romano que fi-

cou na História foi Sctrano, rasado err

Éfeso, como o genial Heràclito. Os es-

mitos de Sctrano que foram recupera-

dos são de extrema lucidez e bom sen-

  1. Ele descreve a existência dos obste-

tras, que deveriam ser numerosos, uma

mistura de práticos e mmdos espeáali-

zados, semelhantes às porteiras da

atua%dade. Ao lado deles, Sorano des-

creve os aborteiros,~ que morri punidos

pela lei romana quando descobertos.

Também como hoje, raramente ocor-

riam as puniçòes, porque a sctáedade

aceitava a pràtic3 do aborto, mesmo

send proibido pelo império Romano.

 

£~kl

 

 

Enwe as obras de Sorano d~a-

se o Manud de Ginewlogia, qiue urdu

de orienw#o para os médiws dumnw

. qiuaw quhm Wdos, pmficamente

wm qpalqiuer commW@o. Nc@e ma-

ele dmmve com absoluta pmd-

posiçòm anonnw dos fetw no

grávido: 1) Podàlico com os p&

2) Podàlico com um sò pé; 3)

Sentadoj 8 D© Oltlbm.

do f«o no de-

do parto, ainda hoje,

maior atenção para os

‘ mesmo wm todos os r–

sos anuais.

 

Fmntisplclo do

llvm de aaleno

editado em lS38

que reuniu todas

as obras do

médico mmano a,

que serdu de

oHentacào para

os pmcewmentos

méwcos durante

a Idade Méwa

(Hepmducào

de Hugo Hei.)

 

Sem dúvida a%uma o Imphio

Romano preocupou-« com a pdfica

médica e procurou, através de nonnm

juddims, constituir um serviço público

definitivo. Porém, este inicio foi a par-

tir da assistéáa médica às legiées roma-

nas, que foram as primeiras benefiáà-

rias da sua institucionafizáçào, com a

‘construção de hospitais miliwrm em

diferentes re#ées do imenso Imphio

Romano. O mais famoso deles foi o de

Vindonissa, em Windish, na anual Sui-

ça, com sessenta quartos r capaddade

para 480 doentes distribuídos em enfer-

marias. Do hospital militar.,rara o dvil

foi um passo. Estes hospitais romanos

podem ser considerados como pr~w-

sores dos nossos anuais.

 

A pmmm@o com a saúde pú-

blica erainqiumfionvd. A I~ei das Dom

Tábuas que remonta aos primórdios da

República, estabeledà mornas pam o

wuhmento e qqeima dos mdh-

fora dos mulos da ddade e a wnWn-

çào dos esgotos, como o Esgoto.Màzi-

mo em Roma, que sò swia revWo’no

Wdo XI e urda hoje é udEndo na

parte antiga da ddàdé. ”  ‘

As autoddades públims rúmàm-

vam o mmpnmento das ncrmm qiue

apimentavam a higiene pública. Cs

grandes arqiuitaw romanos, como Vi-

tnívío, mwmendavam a movia de lu-

gum tnwluados pua a con~o

das casm.

 

Alia dos cuidados com a organização das cidades,forarl cons –

truidos centenas de banhos públicos para estimulo da higiene pessoal

Estas ternas,alçuias i~ecuperadas pelos trabalhos arqueolõjicos,co

no a de Diocleciano,en Rorra,nodiaroabrigarem diferentes piscin;.s e

salas de jinistica centenas de pessoas ao mesmo tempo.

 

a

 

llesno considerando a característica sõcio-2olTticò do Impé

rio Rorrano,r:orcantil-escravista, P que ser:iente os hei:;ens livres des

frutavam dessas facilidades1 inevitável a conparaçio com os popula

ções que morai nas norifúrias urbaiias ([as cidades brasileiras que

não dispõen de água para a higiene pessoal e onde os esgotos correr

céu aberto,junto con a brincadeira inocente das nossas arrancas.

 

* João &XO L. Bmdho é pmú- ~

d@ U+m+& do Am~mnm

 

 

A MEDICINA E O CRISTIANISMO PRIMITIVO

 

 

A religião tem sido uma importante fonte para explicar os estranhos fenômenos da natureza e para concretizar o controle social. A origem das divindades, de certa forma, está ligada aos eventos previsíveis e aos infortúnios  da natureza como a chuva, os terremotos, a fecundação do solo, a reprodução dos animais e plantas e muitos outros.

A existência de referências ao binômio saúde-doença no Antigo e no Novo Testamentos é suficiente para estabelecer a estreita vinculação entre o processo histórico de consolidação da Medicina com o cristianismo.

É possível buscar nas origens dessa religião algumas explicações do fortalecimento das relações médico-míticas ao longo da cristianização do ocidente.

Não é demais lembrar que dos quase cinco bilhões de habitantes que hoje vivem no planeta, um quarto deles professam a religião cristã.

O cristianismo surgiu em condições sócio-políticas sob o regime escravista do Império Romano. Nesta época, as massas populares de origem judia, que continuavam fugindo após a Diáspora, tiveram um papel fundamental na sua formação.

É possível que a Medicina que era praticada pelo povo que habitava o espaço geográfico aonde se formava o cristianismo, fosse impregnada dos conceitos médico-míticos do Velho Testamento.

De acordo com os exegetas, as fontes cristãs que remontam às origens do cristianismo não são muitas. Apesar das controvérsias uma das correntes acredita que a mais antiga é o Apocalipse de São João que dataria do ano 68, seguido das Epístolas que teriam sido escritas na primeira metade do século II, dos Evangelhos e elaborados na segunda metade deste século e a mais recente de todas as fontes históricas cristãs que seria o Alto das históricas cristãs que seria o Ato dos apóstolos. Isto quer dizer que até agora não foi encontrado nenhum outro documento cristão que se possa afirmar ter sido escrito no século I.

Por estas razões, é razoável supor que a Medicina praticada pelos cristãos primitivos estivesse mais próxima das práticas médicas judaicas.

A religião cristã no seu processo de formação sincretizou o conceito da doença-castigo já existente há muitos séculos antes do monoteísmo.

Como conseqüência imediata, deve ter aparecido a figura do profeta, que era representado por  um homem especial capaz de ressuscitar os mortos, curar algumas doenças e de prever o futuro. Não se pode afastar a possibilidade de que este personagem mítico tenha surgido a partir dos médicos-sacerdotes que  curavam e adivinhavam os acontecimentos. De acordo com o discurso cristão, Jesus foi também um profeta (Mt 16,14; Lc 7,16; Jo 4,19 e 9,17).

Da Medicina praticada pela massa popular até o Século V, cristã ou não, restaram poucos registros. A maioria deles está nas relações médico-míticas do Novo Testamento. Da exercida entre os detentores do poder econômico e militar, o conjunto de informações é tão grande que ficou conhecido na historiografia como Medicina romana.

É importante que se saiba que esta última foi realmente exercida em benefício de uma parcela muito pequena da população, representada pelos nobres, militares e ricos comerciantes.

No período compreendido entre os primeiros anos da era cristã e as invasões dos bárbaros, no Império Romano, é possível que a Medicina pra-ticada pelas massas  populares fosse composta de uma complexa relação de fatores que envolviam cinco diferentes aspectos: metafórico, taumatúr-gico ético, doutrinário e técnico:

 

1) Metafórico:  é a própria apresentação de Jesus como médico (Mt 9,12; Mc 2,17; Lc 5,31) que foi aumentada nos escritos das fontes cristãs de Inácio de Antioquia (? – 110), Tertuliano de Cartago (? – depois de 220), Cipriano de Cartago (? – antes de 215) e Orígenes (? – 253).

É importante conhecer a distribuição geográfica da catequese rea-lizada com os padres da Igreja. As suas influências alcançaram um extenso território da Ásia Menor, península itálica e África.

É inquestionável a associação cristã da doença com o pecado. Este fato resultou em inúmeras pinturas metafóricas do cristianismo como religião dos doentes;

 

2) Taumatúrgico:  foi resultante  do sincretismo judaico após o exílio ao adotar a possessão demoníaca como a causa do aparecimento das doenças. A partir do momento em que esta possibilidade foi aceita como verdade, surgiu a necessidade da cura milagrosa e do agente curador.

Ainda segundo o discurso cristão, Jesus durante a sua pregação, encontrou vários doentes no seu caminho. Tendo comprovado a existência do poder de Satanás sobre os homens (Lc 13,16), sentiu compaixão (Mt 20,34) e agiu expulsando os demônios dos que estavam enfermos (Mt 8,16).

Os milagres da cura representam  a visão escatológica da Igreja de Jesus, isto é, antecipam o estado de perfeição que os homens encontrarão no Reino de Deus, conforme as profecias.

As referências do Novo Testamento são claras, Jesus veio ao mundo como médico dos pescadores (Mc 2,17) e também como médico para acabar com as enfermidades (Mt 8,17). Os quatro Evangelhos contêm trinta e seis relatos de curas, milagrosas.

A descrição das curas taumatúrgicas no Novo Testamento são das mesmas patologias já consideradas como de origem divina muitos séculos antes do aparecimento do cristianismo;

3) Ético: dos dois aspectos anteriores, nasceu a concepção ética que marcou profundamente a prática médica que permaneceu viva no mundo cristão até nos nossos dias.

A Medicina passou a envolver um sentimento de ajuda ao enfermo como um dever religioso e perdeu grande parte das conquistas racionais introduzidas pela escola de Cós, entre os séculos V e III a. C. hoje é relativamente comum, mesmo entre pessoas que possuem a visão crítica do todo social, a aceitação da premissa ridícula de que a Medicina é uma atividade de caridade.

Apareceu a necessidade de construir lugares destinados ao tratamento dos doentes, de preferência dentro dos mosteiros. O resultado  desastroso desta iniciativa, de manter o conhecimento médico sob o domínio da Igreja, dificilmente será avaliado.

A introdução do consolo aos moribundos e incuráveis, a valorização da dor como alternativa de tratamento. A oração, os exorcismos e a extrema-unção foram definitivamente adotadas;

 

4) Doutrinário:  a doença  como fruto do pecado foi fundamentado por Gregório de Nusa (? – 394) que aplicou os ensinamentos de Platão e de Galeno, o mais famoso dos médicos romanos, na elaboração de uma an-tropologia do pecado para explicar a cura das doenças.

A partir desta fase, começou. Baseados no neoplatonismo, efervescente na época, Anastácio (? – 373) e Gregório desenvolveram uma explicação da origem da doença na história da humanidade e o seu valor na criação  do homem. Eles concluíram que Adão, foi o arquétipo ideal da espécie humana e que antes do pecado original não existia qualquer doença. Legitimaram, deste modo, a milenar associação entre enfermidade e castigo divino;

 

5) Técnico: o aspecto técnico da Medicina com o cristianismo foi liga-do a techne do politeísmo grego. Alguns cristãos ortodoxos como Taciano (110-175) e Tertuliano (? – depois de 220), chegaram a afirmar ser ilícito o uso de remédios prescritos pela techne.

Taciano aceitava o uso das drogas nos pagãos, mas não nos cristãos.:

 

” A cura com remédios, em todas as suas formas, é fruto do engano. se alguém é curado pela fé na matéria, abandona o poder de Deus” (Orat. ad Graecos, 20).

 

Existiu outra corrente com idéias opostas, conforme relatou Eusébio (? – 340). Este grupo cultivava a filosofia aristotélica, a geometria de Euclídes, a ciência natural e a Medicina de Galeno. Chegou a afirmar textualmente:

 

” Galeno era venerado por alguns deles” ( Hist. ecles. V, 1).

A adoção da idéia grega da physis como sinônimo de divino foi a causa da sanção eclesiástica desses estudiosos que tentaram enfrentar a cúpula da hierarquia cristã naquela época.

Este tema foi reaberto por Orígenes (? – 253), que na sua polêmica contra Celso (séc. II) questionou se era Asclépio, o deus da Medicina grega  ou Jesus quem curava as doenças.

Apesar das controvérsias entre as fontes históricas não cristãs, existe uma tendência para aceitar a possibilidade de que o cristianismo no seu processo de consolidação como religião, tentou conciliar a techne grega baseada na experiência e na ração com a idéia do Deus cristão pessoal, criador e transcendente.

É muito provável que tenha sido esta a herança cultural médico-mítica recebida pelos cristãos primitivos e que determinou marcada in-fluência nas concepções do binômio saúde-doença do Novo Testamento.

 

 

 

 

 

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SÍFILIS E AIDS – A DOENÇA NO LUGAR DO PECADO

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Durante milhares de anos os homens utilizaram a falsa relação doença-pecado para intervir de modo grosseiro no controle social.

Existem registros na história da medicina de inúmeros fatos que comprovam esta afirmação.

Até chegar aos subterfúgios do atual discurso controlador utilizado pela igreja com o apoio do Estado, a atitude do homem não mudou muito nas últimas centenaas de anos, quando enfrenta o medo coletivo da morte.

A insegurança é muito bem instrumentalizada  por algumas categorias sociais interessadas em tirar, cada uma a seu modo, vantagens políticas e lucros financeiros.

É possível achar semelhança entre os acontecimentos que cercaram o aparecimento da sífilis e a AIDS dos nossos dias.

Hoje a sífilis não representa mais nenhum perigi para a sobrevivência do homem. O diagnóstico pode ser realizado precocemente em qualquer laboratório médico e o tratamento se efetiva com algumas injeções de penicilina.

Porém, nem sempre foi assim. Essa doença jé representou um grande estigma, que significava a certeza da incapacidade física, da loucura e morte.

Não se dispõe, até o momento, de qualquer referência da existência da sífilis antes do século XV.

Foi o médico Jerônimo Frascastoro (1483-1553), nascido em Verona, na Itália, quem escreveu , em 1521, a obra que imortalizou ” Syphilis Sive Morbus Gallicus”, onde apareceu, pela primeira vez, a descrição da patologia com a sua atual denominação, que se universalizou rapidamente nos anos seguintes.

É indispensável a revisão de alguns aspectos que caracterizaram o desenvolvimento da cultura na Europa dos séculos XV e XVI, para que se compreenda a obra do genial médico veronês.

O franco desmoronamento da ordem feudal, as lutas intestinas da Igreja, a reforma, o esboço de práticas comerciais  nunca antes utilizadas e a explosão de conhecimento que caracterizou o Renascimento italiano serviram de base para a concretização da obra de Fracastoro.

Ele sofreu influência das contradições geradas pela nova visão do mundo e da ideologia religiosa da feudalidade. Torna-se, também nítido no livro do médico veronês a busca na mitologia grega ( A medicina e a mitologia grega, JC, 23.3.87) de algumas esplicações para o desconhecimento das relações do binômio saúde \ doença.

E desta fase do processo de desenvolvimento do homem que apareceu o embrião do entendimento racional da natureza e das relações sociais. A ousadia dos pensadores e eruditos, Bruno e Galileu, francamentte hostis aos dogmas cristãos, desafiava toda a estrutura de sustentação da Igreja.

Foi nessa formidável combustão na busca da verdade que Jerônimo Fracastoro na sua genialidade intuitiva questionou a toda poderosa Teoria dos Quatro Humores ( A medicina e a filosofia grega, JC, 01.3.87) para explicar o aparecimento das doenças.

O livro ”Syphilis Sive Morbus Gallicus” foi escrito em versos no puro estilo Virgílio, em três livros. O poema começa estabelecendo o caráter epidêmico da sífilisÇ

” Vi vários casos de uma semente má desconhecida

   Traziam exposta já de algunm tempo

   Por toda Europa, parte da Ásia e da Líbia qual tempestade

 

   Irrompeu no Lácio, por causa da triste guerra dos gauleses

   e recebeu o nome daquela gente”

Nos versos 76-80 e 113-115 do livro I, com toda a sua genialidade, Fracastroro sucumbiu definitivamente as pressões eclesiásticas e associou claramente a sífilis com a sexualidadeÇ

” Quando nas pastagens ao  lar livro longamente: e então

   se firmaram os vícios

                Oh! tu que esperas a liberdade pelo trabalho

   Pouco te opões ao cuidado que a todos domina

 Princípios: com esforço de memória guarda estes preceitos

Embora pouco os prazeres do amor: molestem face toda a vida”

O personagem central do livro é um pastor devotado e amando tanto o seu rei que acabou por divinizá-lo. Como castigo sofreu a fúria dos deuses, manifestada sob a forma de uma doença, até então desconhecida, que Fracastoro denominoou syphilis.

Existem várias tentativas para explicar a origem dessa palavra. A mais conhecida é baseada na semelhança etmológica dos personagens da obra do médico veronês e os de Ovídio, mais especificamente o lendário sipylus descrito na Metamorfose. A outra é a possível origem da palavra pelo prefixo sys = amor, que significariam no seu conjunto a idéia do amor sujo.

Em decorrência do completo desconhecimento que envolvia a doença naquela época, ela era conhecida por diversos nomes : mal de Nápoles, mal alemão, mal dos cristãos, mal dos judeus e outros. É evidente que cada população tratava de atribuir a outra a responsabilidade do problema.

Em oposição solitária às primitivas idéias da inflência telúrica na saúde e na doença, Fracastoro esquematizou o primeiro conceito  de ” contágio por animais tão pequenos que eram invisíveis ao olho humano”. Este fato representou um formidável avanço no entendimento da patologia humana.

Ele descreveu os efeitos do guaiaco ou pau-santo( família das Zigofiláceas) usado pelos Índios da América recém conquistada e do mercúrio no tratamento da sífilis.

Ainda sob forte influência da cultura grega, Fracastoro atribuiu o uso do guaiaco como remédio a Asclépio, o deus grego da medicina. Em alguns versos do seu poema ele reforçou esta primitiva relação mítica do homem com o vegetal na busca da saúde (Relações médico-míticas, JC, 18.1.87).

O maisprovável foi que a introduçãodo Pau Santo na Europa tenha sido feita pelo médico de Barcelona, Ruy Dias de La Isla, que acompanhou Colombo, em 1493, na sua segunda viagem á América. este médico foi o responsável pela crença que perdurou até o final do século passado de que a  sífilis tivera a sua origem na América.

As suas observaç~es foram utilizadas pelo historiador Oviedo (Gonzalo Fernandez de Oviedo y Valdez) para disseminar essa falsa certeza.

Esse conjunto de erros chegou a confundir o Frei Bartolomeu de las casas, que na sua ”História Geral das Índias ” afirmou que a sífilis  já existia  na América pré colombiana.

Comoa totalidade das informações de Fracastoro não poderiam ser comprovadas naquela época e  feriam a concepção de doença-pecado da Igreja, ele sofreu a amargura solitária do pioneirismo consciente. Morreu só e repudiado no interior de Verona.

A partir do século XVI a sífilis ficou conhecida como a doença no lugar do pecado e a Igreja, uma vez mais, conseguiu intererir no controle social.

A genialidade de Jerônimo Fracastoro ainda teria  que esperar até 1905, quando foi identificado o Treponema palidum, o protozoário causador da sífilis.

 

Com ou sem o pecado da doença foi controlada no seu aspecto médico pela penicilina a partir de 1929. Os remédios divinos foram substituídos pelo composto resultante da pesquisa racional.

Foram necessa´rios quatro séculos para que se compreendesse que a sífilis não era uma doença moral.

É provável que não seja necessário tanto tempo para que todos entendam que a AIDS também não é consequência da violação das regras sociais estabelecidas e para que desapareçam das relações sociais  afirmações como a do Cardeal-Arcebispo  do Rio de Janeiro, D. Eugênio Sales, publicadano jornal do Brasil de 3.1.87: ” A AIDS é consequência da degenerescência moral, inversão sexual, troca de perceiros e uma interminável lista de atos condenados pela legislação divina. É exatamente no desrespeito à moral católica que vamos encontrar o maior foco da propagação da AIDS. Entre as sombras provocadas pelo pecado, vem o brilhar de grandeza e a atualidade dos ensinamentos de Cristo”.

Do mesmo modo que todas as doenças que o homem já enfrentou na sua luta pela sobrevivência, a sífilis e a AIDS, tem o seu componente social..

Porém, este fato não justifica, sob qualquer pretexto, que a doença seja utilizada como instrumento para o controle social.

 

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