A MEDICINA NO TEMPO-I

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Os cursos de Medicina no Brasil, nas últimas décadas, desvincularam-se, injustificadamente, da busca das suas raízes e relações históricas. A  conseqüência mediata desse fato foi a perda da compreensão do que representa o papel da Medicina enquanto Ciência e de suas determinantes nas transformações das sociedades.

O médico de hoje jamais poderá compreender a Medicina que é praticada no Ocidente e no Oriente se não olhar para trás e entender a dinâmica social co-relacionada com a ação médica.

Somente com este conhecimento histórico e crítico será possível a compreensão da verdadeira função social de médico na sociedade contemporânea e de que modo, ao longo de milhares de anos, ele participou direta e indiretamente da evolução do homem.

Infelizmente, os registros são escassos, mas suficientes para que as análises arqueológicas e antropológica possam estabelecer algumas relações concretas da ação médica na pré história.

As comunidades primitivas desse período, por não possuírem estratificação social, tinha, na busca pela sobrevivência e na explicação dos  fenômenos naturais, grande parte da sua atenção. As relações vida/morte e saúde/doença deveriam estar entre elas, já que interferiam na segurança pessoal e coletiva. Estes fatos teriam provocado a especialização de alguns membros destas comunidades, que se interessaram por estas relações.

Nesta fase, quando o homem primitivo começou a tentar modificar o processo vida/morte e saúde/doença – fez-se médico.

A medicina pré-histórica surgiu em comunidade ágrafas. Os documentos escritos mais antigos, que podiam ser lidos por outros, datam de 5.500 anos, encontrados entre os sumérios na Mesapotâmia.

Os registros genealógicos do homem da nossa espécie – Momo Sapiens – datam de aproximadamente 500.000 anos, correspondendo ao pleistoceno médico e superior.

A documentação fóssil existente da primeira ação médica no homem pré-histórico data de 45.000 anos, no pleistoceno superior. Trata-se de esqueleto descoberto no monte Zagros, no Iraque, com traços de amputação cirúrgica do braço direito.

Sem dúvida, as doenças teriam existido antes do aparecimento do homem na terra, porém, a questão é tentar saber como as sociedades primitivas se relacionavam com estas doenças, na sua luta pela sobrevivência. A análise dos poucos registros arqueológicos a antropológicos podem nos dar a pista da interpretação histórica e, não poucas vezes, estabelecer paralelismos da ação médica exercida pelo homem pré-histórico com o homem americano pré-colombiano e mesmo com alguns grupos indígenas no Brasil de hoje.

O estudo dos fósseis mostram que o homem pré-histórico estava sujeito a diversas doenças semelhantes as que nós, homens modernos, continuamos enfrentando nos dias atuais. A fratura traumática foi uma das patologias mais freqüentes nos fósseis estudados, Em algumas delas foram confirmadas sinais evidentes, de infecção do osso, a osteomielite, semelhante a que se encontra nos hospitais de hoje.

Foi possível estabelecer a existência de doenças sistêmicas, não traumáticas, como a denominada gota das cavernas, uma espécie de reumatismo do homem pré-histórico.

Infelizmente, as pesquisas arqueológicas jamais encontraram corpos ou órgãos anteriores a 4.000 anos a.C. em compensação, já foram identificados várias bactérias pré-históricas fossilizadas. O pólen de Nenúfar, designação de diversas plantas da família das ninfeáceas, capazes de determinar reação alérgica no homem atua, existe desde o pleistoceno médio, isto é, há mais de 100.000 anos.

A tuberculose óssea na coluna vertebral, problema médico freqüente nos países subdesenvolvidos, inclusive no Brasil, foi documentada por achado de esqueleto de homem do período Neolítico, em torno de 7.000 anos a.C. , constituindo, sem dúvida, o primeiro exemplar médico de tuberculose óssea. Podemos supor inclusive, que esta doença, a tuberculose, foi traduzida para o Brasil pelo colonizador europeu , logo nos primeiros anos de ocupação poredatória.

O achado das doenças na pré-história é indiscutível. Porém, interessa conhecer como os homens primitivos iniciaram a luta para conservar a saúde e evitar a morte. Certos autores, especializados em História da Medicina, arriscam responder em comparação como comportamento de certos animais, quando estão feridos ou doentes: lambem os ferimentos, fazem limpeza mútua e comem plantas eméticas.

É provável que o homem primitivo tivesse se comportado da mesma maneira, que a sucção da área ferida sangrante e a pressão local para parar a hemorragia tenham sido as primeiras medidas terapêuticas utilizadas pelos nossos antepassados.

Perdura a questão da existência do ritual-mítico ligado a busca das causas e das soluções das doenças. Na gruta de Trois Fréres, na França, há uma pintura de um personagem em movimento de dança, datando com mais de 10.000 anos a.C., travestido de  cervo, em atitude que sugera uma espécie de ritual médico-mítico, semelhante em tudo ao ritual da dança dos bisões, praticado pelos índios do norte dos Estados Unidos, durante cerimônia simbolizando o poder animal na cura das doenças e lembrando o ritual elaborado pelos pajés Raoni e Sepaim, no início deste ano, sobre o cientista Augusto Ruschi, com finalidade de retirar o veneno que teria sido inoculado pelo sapo Dendropata. Infelizmente, com perda irreparável para a comunidade cientifica brasileira, Augusto Ruschi faleceu alguns meses depois, com insuficiência hepática e renal secundária a cirrose hepática.

Foi provavelmente durante o Neolitico, entre 10.000 a 7.000 anos a.C., que o homem passou a incorporar métodos empíricos no tratamento das doenças. Estes métodos algumas vezes, foram extremamente agressivos, como a trepanação do crânio , isto é a abertura da cavidade craniana com o auxilio de instrumentos suficientemente fortes para cortar os ossos que protegem o cérebre. É facilmente comprovável que alguns destes homens pré-históricos que sofreram esta cirurgia sobreviveram muito tempo após a sua realização, o suficiente para favorecer novo crescimento do osso cortado, Cirurgias semelhantes foram encontradas em fósseis de índios americanos pré-colombianos, das civilizações asteca e inca, que também sobreviveram a estas práticas médicas primitivas.

Se pensarmos que não são muitas as cidade do Brasil onde hoje é possível fazer estas cirurgias e que elas foram realizadas no homem pré-histórico da Europa em torno de 12.000 atrás e no homem americano pré-colombiano a pouco mais de 1.000 anos, torna-se evidente o quanto é importante para a medicina atual não perder a vista o conhecimento o médico historicamente acumulado. Como encontrar os verdadeiros pontos de união entre estes achados?

Restará sempre a dúvida de que estas aberturas do crânio terem sido realizadas com o objetivo de facilitar a saída de possíveis causas sobrenaturais de doenças desconhecidas pelo homem primitivo.

O médico primitivo, certamente exercia as funções de sacerdote e médico, pois a natureza misteriosa das doenças fazia supor a existência de causas sobrenaturais, o que reforçava de varias formas, a relação de dominação do médico primitivo sobre os integrantes do grupo social.

Esta relação de dominação, sob alguns aspectos, perdura até os dias atuais, certamente alimentada pela própria formação médica, alicerçada em terminologia especial e de difícil acesso. O objetivo último seria aumentar o poder de persuasão sobre o doente, tendo como base um dos pontos de maior sensibilidade do homem de qualquer época: a preservação da vida.

E foi, sem dúvida, esta relação que contribuiu para que o homem primitivo evoluísse em processo de assimilação do conhecimento, capaz de impulssioná-lo a questionar a sua origem, como primeiro passo para o aperfeiçoamento da linguagem e da transmissão da informação.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
Esta entrada foi publicada em ARTIGOS. Adicione o link permanente aos seus favoritos.