A MEDICINA NO TEMPO – II

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

Com a consolidação da Primeira Revolução, a Agropastoril, no Neolítico, entre 10.000 e 5.000 anos a.C., importantes modificações foram se processando nos grupos sociais que habitavam a Mesopotânia e o Egito. Estas sociedades arcaicas iriam absorver parte da experiência acumulada em 500.000 anos de História, desde o aparecimento do Homo sapiens.

Nesta fase, teve início a modificação da economia produtora a nível de subsistência coletiva para uma concreta  divisão de trabalho, como aparecimento de excedente de produção e das trocas comerciais.

As sociedades mostrava-se francamente hierarquizadas. Aparece a propriedade privada, possibilitando o processo de assentamento duradouro dos grupos humanos, que evoluiriam para a organização das primeiras aldeias. Este aldeamento estratificado é encontrado na Nova Idade da Pedra , no Neolítico, em torno de 5.000 anos a.C.

As cidades vão sendo formadas como produto da transformação e fortalecimento dos grupos humanos, ao mesmo tempo que as sociedades arcaicas se estruturam social e politicamente, processando-se assim as modificações que dariam início ao aparecimento das civilizações regionais. Entre elas, destacaram-se pela ocupação territorial e poder de guerra: a sumérica, egípcia, cretense, fenícia , acádica, babilônica e assíria, que iriam decididamente influenciar, direta e indiretamente, o pensamento ocidental.

Estas civilizações regionais formaram e assimilaram ao longo das suas consolidações, diferentes formas de governos, predominando o teocrático de regadio e mercantis-escravista, que teriam, de diferentes formas, moldando a ação médica ás conveniências do poder.

As guerras fratricidas foram freqüentes e contínuas, oferecendo como produto final dos saques novos escravos e territórios, fortalecento a propriedade privada e a escravidão. Certamente, durante as guerras, houve participação ativa dos médicos e progressos na Medicina, principalmente no manuseio das grandes feridas traumáticas e amputações cirúrgicas dos membros dilacerados.

Os metais são fundidos, aparece o cobre, a mecanização da agricultura toma corpo com os arados primitivos, aparece o barco a vela e o uso comum do ferro são fatos que contribuíram para aumentar as trocas do excedente da produção, fortalecendo a maior especialização da sociedade.

O corpo humano começa a ser manuseado nos rituais de sacrificio religioso-mítico e na conservação do corpo após a morte, com a mumificação  praticada pelos egípcios. É neste contexto que já existe a distinção entre médico e cirurgião pré-hipocrático, insto é, antes da formação da escola criada por Hipocrátes, nascido na ilha de Cos, na Grécia, em torno do ano 460 a.C., considerado ate hoje como o pai da medicina.

A atividade médica deveria ser intensa e diferenciada nos vários extratos sociais para dar origem a querelas e atritos tão freqüentes, como ainda é nos dias atuais com todo o cientificismo. Sabe-se que o  Rei Hamurabi (1728- 1688 a.C.), da babilônia, dedicou-se vários parágrafos do seu famoso código para disciplinar o exercício da Medicina, como no de número 80, onde se lê:

218 – Se um médico fez em um awilum (homem livre em posse de todos os direitos de cidadão) uma insição difícil com uma faca de bronze e o causou a morte do awilum ou abriu o nakkaptum (arco acima da sobrancelha) de um awilum com uma faca de bronze e destruiu o olho do awilum: eles cortarão a sua mão.

219 – Se um médico fez uma insição difícil com uma faca de bronze no escravo de muskenum (intermediário entre o awilum e o escravo) e causou a sua morte: ele deverá restituir um escravo como o escravo morto.

220 –  Se ele abriu a nakkaptum de um escravo com uma faca de bronze e destruiu o seu olho: ele parará a metade do seu preço.

  • Se um médico restabeleceu o osso quebrado de um awilum ou curou um músculo doente: o paciente dará ao médico 5 ciclos (cerca de 40 gramas) de prata.
  • Se foi filho de um muskenum: dará 3 ciclos (cerca de 24 gramas) de prata.
  • Se foi um escravo de um awilum: o dono de escravo dará 2 ciclos (cerca de 16 gramas ) de prata.

Com isto o Código de Hamurabi formou jurisprudência com dois pontos cruciais da ordem médica: as sanções que devem receber os médicos pela imprudência, imperícia e negligência e os honorários médicos diferenciados pelo atendimento de diversos grupos sociais. Estes problemas reais da ordem médica perduram até os nossos dias e são notícia freqüente, algumas vezes até na seção  policial, nos principais jornais do nosso país.

O mais antigo documento escrito que registra a participação do médico no antigo Egito data de trinta séculos antes de Cristo, 3.000 anos a.C., na estrela funerária de Was-ptah, onde é descrito uma morte por colapso cardíaco.

Ainda no Egito já existia a especialização médica. Em torno do ano 2.600 a.C., o médico da corte Khaui, na IV Dinastia, faz clara distinção entre cirurgiões e médicos, e que se dividiam em três especialidades: oculistas, dentistas e internistas.

Os documentos médicos egípcios mais importantes são os papiros de Ebers e o de Edwin-Smith, datando de aproximadamente 2.000 a.C., Estes registros dão nomes a dezenas de doenças e seus tratamentos com certa lógica e racionalidade. Apesar disto, é mantida, com certa veemência a condição mítica-religiosa dos médicos.

De modo geral, as receitas são eficazes, mesmo à luz dos conhecimentos atuais, como por exemplo, a recomendação para a administração de chá de sementes de papoulas para recém-nascidos com insônia.

Apesar da racionalidade e da utilidade prática do conteúdo dos papiros de Ebers e de Edwin-Smith, a prática médica egípcia estava longe de constituir um sistema organizado.

Além da Medicina praticada no Egito, a que era feita nas civilizações regionais, assíria e babilônica, apresentavam certas características comuns e são representativas na Medicina pré-hipocrática.

A Medicina assírio-babilônica considerada as doenças como castigo do deus Shamash, que presidia a justiça. Daí, provém certamente, o maior prestígio dos médicos, relação aos cirurgiões que atuavam nas conseqüências de acidentes e feridas de guerra, enquanto que os médicos exerciam as suas atividades com doentes portadores de males desconhecidos e, sem dúvida, com interferência mítica-religiosa nas condutas do tratamento.

Entre as substâncias utilizadas pelos médicos assírios-babilônicos estão relacionadas: a beladona, o aniz, o óleo de rícino, o gengibre, a hortelã, a romã e a papoula. Muitas delas continuam sendo utilizadas ate hoje, 4.000 anos depois.

Nesta fase do desenvolvimento das cidades-reinos, foram introduzidas importantes medidas sanitárias nas cidades, como a construção das redes de esgotos e abastecimentos de água potável, de fazer inveja às periferias urbanas do nosso Brasil.

Existe, no museu de Louvre, em Paris, um vaso achado na região de Lagash, apresentando o símbolo do deus da cura – Ningishzida  – com dois dragões coroados e duas serpentes entrelaçadas num bastão. Este símbolo evoluiu através dos séculos, passando, na Medicina grego-romana hipocrática, para uma única serpente enlaçada no bastão, representando Eusculápio, o deus grego da Medicina, adotado pelos médicos até hoje.

O símbolo da serpente é freqüentemente ligado à transcendência do ser, talvez porque pode viver acima e abaixo da terra, atuando como mediador entre os dois mundos e como amuleto contra o medo atávico da morte, onde o médico desempenha o símbolo vivo da luta do homem pela sobrevivência.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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