Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
A consolidação da civilização grega ligada à concepção da polis com a sua estrutura político-jurídica definida e o homem sendo visto como a medida de todas as coisas, constituem o esplendor da nova visão das relações do homem com ele mesmo e com o meio.
A figura de Hipócrates, considerado o pai da Medicina, terá nascido no ano 460 a.C., na ilha de Cos, nesta Grécia caracterizada pela busca da racionalidade. A forma física, talvez imaginárias, que nos chegou de Hipócrates, foi a de um velho, calvo e barbudo, com semblante tranqüilizador. Ele foi contemporâneo de Sócrates, do sofista Górgias e de Demócrito, com quem teria tido relações pessoais e profissionais em Abdera.
Sem qualquer dúvida, foi Hipócrates o fundador das bases da atual ordem médica e ele representa para a Medicina o mesmo que platão para a filosofia.
A produção atribuída a Hipócrates é enorme. Hoje, sabe-se que muitos dos livros são apócrifos, porém, parece não haver dúvidas da participação de Hipócrates, direta ou indiretamente, na elaboração dos seguintes: Epidemia, O Prognóstico, Tratado Cirúrgico, Tratado Dietético, Tratado Nosológico, Tratado Ginecológico e Tratado Ético, sendo este último o responsável pelo suporte teórico da atual Medicina pratica no Ocidente.
Na mesma época em que Demócrito lançava as bases do atomismo – tudo é formado por átomos que são partículas indivisíveis e invisíveis, eternas e imutáveis – dando pela primeira vez a explicação do odor, da cor e do sabor, Hipócrates lançava sua teoria dos quatro humores para explicar o aparecimento de doenças.
Na ilha de Cos, foi fundada a Escola de Medicina, dirigida por Hipócrates , que conseguiu reunir dezenas de colaboradores, dando início verdadeiramente a esboço de separação da Medicina de práticas místicas e cujo impacto revolucionário é sentido até hoje tanto na formação como na prática médica de todo o mundo.
Entre as dezenas de ensinamentos hipocráticos, destacam-se como ainda atuais e pertinentes os conceitos de dignósticos, prognósticos e tratamento, distinção entre sintoma e doença, os três afonismo – o médico e a sua arte , o doente e a sua natureza individual e a doença. Estes conceitos, apesar de terem sofrido aperfeiçoamento ao longo dos séculos, continuam válidos e utilizados, mesmo com toda a tecnologia da moderna Medicina.
Os instrumentos cirúrgicos que foram utilizados pelos médicos gregos são absolutamente semelhantes aos de hoje: as sondas, os bisturis, os trépanos , as pinças e os afastadores. As observações do corpo humano foram responsáveis por descrições realmente minunciosas e maravilhosas da anatomia, como as feitas po Herófilo, contemporâneo de Hipócrates, que distinguiu o cérebro do cerebelo, identificou as membranas meníngeas e o líquido cerebrorraquíano, as funções motoras e sensitivas dos nervos periféricos e o sistema linfático, sendo que este último só seria redescoberto no século XVII.
Segundo a Mitologia grega, Eusculápio era filho de Apolo e da ninfa Corônis. Apolo matou Corônis e entregou o filho aos cuidados do centauro Quiron, famoso médico, que instruiu Eusculápio na arte de curar. Finalmente, Eusculápio tornou-se o deus da Medicina e em sua homenagem foram construídos muitos templos, hoje considerados verdadeiros hospitais. O mais famoso deles é o de Epidauro cuja reconstrução arqueológica mostrou salões, vestiários e alojamentos para médicos e para os doentes, salas de banho e teatro para a recreação. A estrutura física destes templos-hospitais, construídos há mais de 2000 anos, é muito mais adequada que a maioria dos hospitais do nosso país.
É muito provável que a figura do médico-sacerdote tenha chegado inalterada no tempo hipocrático. Quando a Escola de Cos já estava no seu apogeu e Hipócrates já era reconhecidamente uma autoridade como médico, havia harmoniosa convivência entre a nova prática médica proposta por Hipócrates e as práticas médico-míticas exercidas pelos sacerdotes-médicos dos templos de Eusculápio. Foram recuperadas várias tábuas de argila no templo-hospital de Epidauro com agradecimento ao deus Eusculápio pela cura obtida. Respeitando as devidas proporções, na leitura dos classificados de “ A Crítica “ , no setor de Orações, não houve mudança significativa no comportamento do homem em relação a sua dependência ao metafísico.
Esta relação médico-mítica existente nos templos hipocráticos despertou interesse a crítica, como as atribuídas a Aristófanes, o irônico comediógrafo de Atenas, que encenava peças ridicularizando o médico-sacerdote de pouco escrúpulo.
A idéia cristalizada que perdura no pensamento ocidental de como o médico deve agir, falar, vestir e trabalhar é também, conseqüência da assimilação e utilização do Tratado Ético hipocrático, ao longo da história, com a conivência e aceitação dos próprios médicos, já que este conjunto de normas coloca-os entre o natural e o sobrenatural.
Reforça este raciocínio o primeiro parágrafo de A Lei do Tratado Ético: “A Medicina é de todas as profissões a mais nobre (…)”. Esta distinção da Medicina das outras profissões é reforçada por Galeno, alguns séculos mais tarde, considerado o sucessor de Hipocrátes, na sua afirmação: “Todo médico deverá ser filósofo”. Os filósofos eram considerados como superiores em relação aos outros homens. Este assunto é claramente expresso no Fédon de Platão, quando trata do Mito do Destino das Almas, no diálogo entre Sócrates e Simias: “E, entre estes, aqueles que pela filosofia se purificarem de modo suficiente sem os seus corpos, durante o resto do tempo, e a residir em lugares ainda mais belos que os demais” .
O juramento original contido no Tratado Ético de Hipócrates começa assim: “Eu juro por Apolo, médico, por Eusculápio, por Hípia e Panacéia, por todos os deuses e todas as deusas(…)” mantendo evidente relação mítica, que traduz toda uma herança dos médicos pré-históricos e pré-hipocráticos, tendo sido mantida, de diferentes formas, até hoje.
Alguns historiadores da Medicina atribuiem ao conteúdo ético e deontológico do juramento de Hipócrates uma verdadeira prevenção nas defesas da prática médica, cheia de contradições, capazes de gerar tanta polêmica que motivou o rei Hamurabi da Babilônia, 1500 anos antes de Hipócrates e lançar as primeiras leis para normatizar a prática médica.
A própria aparência do médico foi prevista pelos ensinamentos hipocráticos. No capítulo Do Médico, no Tratado Ético, lê-se: “A norma do médico devera Ter boa cor e bom aspecto (…) Pois será de grande utilidade para si colocar-se elegantemente e perfumado agradavelmente (…) e tudo isto agradará ao doente”. Continua sendo esta a imagem exigida do médico ideal , independente de sua diferenciação no domínio do conhecimento.
A herança hipocrática forneceu às gerações médicas o arsenal para consolidar o atual poder médico. Este poder, baseado fundamentalmente no prognóstico, é capaz de subjugar outros poderes – político, econômico, social e cultural – de tal forma que se estabeleceu ao longo de quase 2500 anos praticamente sem questionamentos.