Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Com a divisão do Império Romano iniciada pelo Imperador Constantino e consolidada por Teodósio em fins do século IV, o Império Romano do Ocidente teve a sua capital em Milão, na Itália e o Império Romano do Oriente em Constantinopla, atual Istambul, capital da Turquia.
O Império Romano do Ocidentesofreu profunda transformação sócio-políticas nos anos que se seguiram em conseqüência da invasão dos visigodos, da cristianização e da gradativa mudança do sistema mercantil-escravista para o feudal e, como não poderia deixar de ser, a prática médica foi envolvida e modificada pelas mudanças em curso.
Com a cristianização do Império Romano do Ocidente, a influência exercida pela Igreja Católica na Medicina foi se fazendo de forma gradativa e irreversível. As origens dessa interferência remonta aos tempos pré-cristãos, quando o pensamento judaico associava o aparecimento das doenças aos pecados cometidos e a cólera de Deus. Progressivamente a doença passou a ser uma espécie de pecado e o único tratamento possível para o sofrimento era o perdão de Deus.
Esta relação do homem com o binômio saúde/doença evoluiu sem alteração e se consolidou definitivamente no Ocidente com a ação evangélica de Jesus Cristo, que incluía a capacidade de curar milagrosamente inúmeras doenças, cujo relatos foram passados através das gerações pelos apóstolos Marcos, Mateus, Lucas e Joao no Novo Testamento.
Entre os depoimentos dos apóstolos de curas milagrosas que Jesus Cristo realizou durante a sua evangelização ,podemos citar a cura do paralítico ( Mt 7,32-35), cura do louco (Mt 20,30-34), cura do surdo-mudo (Mc 7,32-35), cura do epilético (Mc 9,16-26) , chegando a ressuscitar o filho da viúva de Naim ( Lc 7,11-25) e Lázaro, já em processo de decomposição do corpo (Jo 11,17-44).
Esta visão cristã do binômio saúde-doença permaneceu inalterada por toda Idade Média, fazendo com que a atividade médica perdesse, em parte, as conquistas alcançadas nos períodos hipocrático e romano, interferindo diretamente no novo rumo que se processou na Medicina.
Por razões não perfeitamente esclarecidas, os médicos laicos simplesmente desapareceram a partir do século V. O atendimento médico e o combate ás principais doenças passaram a ser feitas dentro dos mosteiros pos padres-médicos de diferentes ordens religiosas, como os irmãos santos Cosme e Damião.
Entre os mosteiros que se destacaram no exercício da atividade médica está o de Monte Cassino, na Itália, construído sobre antigo templo de Apolo. Ao mesmo tempo, multiplicava-se também o uso de relíquias e talimãs para a proteção das doenças. Exemplos marcantes de como a superstição era o fundamento da Medicina desta época podem ser sentidos nas palavras de Santo Agostinho: “O perfume de azeviche afugenta os demônios e seu uso desata e desfaz o quebranto, ligaduras e encantamentos e todos os fantasmas tristes e melancólicos”e na descriação da Peste Negra feita por Boccacio: No ano de Nossa Senhora de 1348 ocorreu em Florença, a mais bela cidade de toda a Itália, uma peste terrível, que seja, devido à influência dos planetas ou seja como castigo de Deus aos nossos pecados(…)”.
Possivelmente vários fatores intervieram para estruturar a concepção da caridade cristã. Houve, certamente, influência desse entendimento na transformação do serviço médico como trabalho profissional remunerado, como era desde a época pré-hipiocrática, em espécie de sacerdócio que poderia ser remunerado ou não. Por esta razão, a Medicina, durante alguns séculos, foi exercida exclusivamente por religiosos. Existe centenas de manifestações artísticas, em pinturas e esculturas, nos principais museus do mundo, datando a partir do século V até o século XIV, saudando e estimulando a prática médica como atividade religiosa não remunerada, simplesmente objetivando o bem do próximo, como na parábola do Bom Samaritano.
A utilização dos santos como intermediários do poder divino na cura das doenças de desenvolveu entre os anos de 500 e 1000, mas a especialização ocorreu nos anos seguintes, isto é, determinado santo é o protetor de alguma doença especifica.
Com o passar dos anos, os padre-médicos passaram a exercer a Medicina fora dos muros dos mosteiros. Em conseqüência dos atritos criados pelas contradições nas relações médico-paciente e dos danos causados nos doentes por alguma prática vigente, como a sangria, os religiosos foram proibidos de exercer a atividade médica fora dos mosteiros por determinação dos Concílios de Remis (1131) e de Roma (1139).
Esta situação evoluiu para a formação de escolas leigas de Medicina , que foram, pouco a pouco, se formando junto aos mosteiros. A Escola de Salerno, no sul da Itália, fundada ao lado de um convento beneditino, foi o primeiro de orientação puramente leiga.
A Escola de Salerno é responsável perante a História pela famosa frase: “Primo, nou nuocere”isto é. “Em primeiro lugar, não façam mal”. Esta frase devera ser falada continuamente em todas as escolas de Medicina e escrita em todos os ambulatórios e consultórios médicos da atualidade, objetivando a diminuição da iatrogênese.
Pouco tempo depois surgiu a Escola de Montpelier, na França, com as mesma características da Escola de Salerno, isto é, a fundamentação do ensino médico era baseado nas obras de Hipócrates e Galerno. O grande expoente da Escola de Montpelier foi Guy de Chauliac(1300-1370), autor do livro “Grande Cirurgia” difundido em toda a Europa nos séculos seguintes.
Neste período, começa a ser esboçado novo avanço nas idéias através de Thomás de Aquino (1225-1274) educando em Montpelier. Thomas reformula o pensamento aristotélico que dominava a teologia medieval e retoma a relação entre a fé e a razão iniciada por Abelardo (1079-1142).
Na sua filosofia do será. Thomás de Aquino afirma que a perfeição máxima não a idéia de ser, mas o ato de ser e rejeita a interferência de Deus na auto-suficiência do conhecimento humano. Com esta nova visão teológica o caminho para novos conhecimentos e indagações está aberto, mesmo que de forma ainda restrita, culminando, com a criação e o fortalecimento das universidades de Bolonha, Mont-Pelier e Paris.
Os estudos da anatomia humana foram retomadas pelas maos de Mondino de Luzzi(1270-1326), professor da Universidade de Bolonha, que realiza a sua primeira dissecção humana em 1315. Como fruto das suas observações nos cadáveres dissecados desacredita publicamente muitas afirmações de Galeno, que se mantiveram intocáveis durante dez séculos. Os estudos de anatomia de Mondino permaneceram como verdades absoluta até que Vesálio, em 1543, publicou o seu maravilhoso tratado de anatomia humana “Human Corporis fabrica”.
A Cátedra universitária remonta a este período. O professor ficava sentado numa grande cadeira, daí o nome de Cátedra, e ditava a aula aos alunos calados e atentos, ávidos de conhecimentos, sem questionar as exposições do catedrático. Esta imagem penetrou nas universidades brasileiras e ainda hoje, infelizmente, restam profundas cicatrizes deste tipo de relação docente/discente.