CURADORES E ADIVINHOS

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

 

As fronteiras entre adivinhação e medicina são tão vagas que não nos surpreenderá encontrar num tratado médico um prognóstico aventureiro e, num tratado de adivinhação, um diagnóstico médico pertinente.”  Jannie Carlier

 

A história, mesmo quando abordada como pretensa sucessão imparcial dos fatos históricos, está repleta de dados confirmando a exis-tência, desde tempos imemoriais, dos curadores e adivinhos. A maioria desses trabalhos está colocada na polaridade estática que favorece o maniqueísmo.

Transcrevem em análise elogiosa quando eles estão apoiando o poder dominante ou, simplesmente, despreza-os quando representam a resistência.

Entendemos o papel social dos curadores e adivinhos como situado em contexto muito mais amplo. É necessário estender a historio-grafia no tempo, sob o enfoque dinâmico da luta travada pelos grupos na ocupação dos espaços sociais e políticos, para que possamos com-preendê-los como , agentes de coesão social.

E até possível que as pessoas especializadas em curar e adivinhar tenham uma qualidade especial própria – o dom –  que as distingam dos outros mortais.

É notório, há milhares de anos, o reconhecimento coletivo da existência de homens e mulheres com capacidades especiais, de possível natureza transcendente,  para curar e adivinhar, intermediando a vontade da Divindade.

Infelizmente, continuamos sem compreender o seu significado biológico. Permanece sem resposta a indagação: será que o curso da vida pode ser modificado por esse dom?

Enquanto não temos outra resposta, continua prevalecendo o sentido bíblico (Tg. 1,17), largamente difundido depois da cristianização do Ocidente:

 

Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vem do alto e desce do Pai das luzes”.

 

Tanto nas sociedades ágrafas como nas que desenvolveram a lin-guagem escrita, é possível identificar uma intricada relação de depen-dência entre essas pessoas especiais com os diversos segmentos sociais das comunidades onde atuavam.

Esse nó, relacionado com a capacidade humana em abstrair o pensamento para enfrentar a doença e o futuro, está envolvido no pro-cesso de ligação humana com o transcendente através da experiência religiosa com o  sagrado.

É possível que essa complexa manifestação social tenha come-çado no desconhecimento causal das intempéries naturais e alimentado pela necessidade do controle social pelos que detinham o poder político e militar.

A maior pane da comunicação religiosa acabou sendo feita sobre a regra binário do prêmio-castigo. A saúde e a bonança eram os prê-mios pelo cumprimento das ordens, a doença e o mau tempo represen-tavam o castigo pela desobediência.

Por essa razão, o aliado do poder dominador que curasse a doen-ça e previsse os infortúnios, representava a divindade. Ao contrário, quem não reproduzisse a mensagem dominadora, mesmo que sarasse e adivinhasse com a mesma competência, era identificado como a anti-divindade.

É também possível evidenciar que os curadores e adivinhos, em muitos contextos históricos, exerceram função equivalente na organiza-ção social. É por essa razão que os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde os primeiros tempos.

É lógico pensar que a posse do dom sempre deu mais poder a quem o possuía, colocando-o em destaque na comunidade, sempre aparecendo na História como conselheiro prudente ao intermediar a vontade divina e .

Nas suas práticas, eles utilizaram esse poder e os saberes historica-mente acumulados no trato da doença para manter os seus privilégios ou estruturar certos núcleos de resistência em situação de adversidade.

A segunda possibilidade se dá, fundamentalmente, quando o po-der, nas suas diferentes manifestações de força, tenta impor novas con-cepções escatológicas, como etapa indispensável da substituição cul-tural da luta entre dominador e dominado.

A linguagem do dominador para manter o projeto político de mudança do antigo pelo recente é de fundamental importância. Ela deve trazer, de modo  transparente a mensagem de esperança reque-rida pelos anseios coletivos anteriores à conquista. Só assim, será compe-tente para seduzir e minimizar a resistência no povo conquistado.

Nas circunstâncias que seguem o jogo de força entre conquistador e conquistado, a resistência nasce e manifesta-se na razão inversa da sedução exercida pelas novas propostas de vida e morte ao fazer surgir outros conceitos de salvação pessoal e coletiva.

A relação do poder dominante com as idéias religiosas é carac-terizada pela tendência marcante, sempre que possível, para substituir o conjunto das crenças do povo subjugado.

Quando esta alternativa se toma impossível de ser realizada em curto prazo, são impostas as alianças culturais  através do sincretismo religioso, determinadas pelos núcleos de resistência.

Alguns reis citados no Antigo Testamento, como Baal e Astarte  cul-tuados na Mesopotâmia, foram identificados pelo judaísmo como cura-dores e adivinhos representantes da anti-divindade.

A História está repleta de  exemplos das tentativas de substituição das crenças e das idéias religiosas.

A  dura condição de vida imposta aos povos conquistados pelos monarcas pré-cristãos contribuiu para o aparecimento de vários heróis mítico de salvação durante a dominação romana na Palestina.

O surgimento do cristianismo pode ser inserido nesse contexto, onde muitos povos, desgastados com as suas antigas crenças, foram bus-car na nova mensagem cristã as forças da libertação.

O processo de substituição cultural nunca se dá em linha reta. E efetuado em dois momentos distintos: o novo sendo difundido a partir da  desmoralização do antigo.

A complexidade aumenta no embate das forças de pressão e contrapressão dos grupos que digladiam para ocupar os espaços. Todavia, é somente no segundo instante que a conquista se consolida, justamente quando pode aparecer o herói mítico de salvação para satisfazer as aspirações coletivas imediatas.

Existiram muitos heróis míticos na História das crenças e das idéias religiosas. Jesus Cristo, fundador do cristianismo, é identificado como um dos mais importantes.

A mensagem cristã de libertação modificou completamente a estrutura sócio-política do mundoÍ Quase dois mil anos depois, continua tendo uma sedução irresistível, capaz de penetrar na profundidade do sentimento humano.

De acordo com os Evangelhos, Jesus Cristo veio ao mundo como o filho encamado de Deus, com poderes de curar e ressuscitar a fim de anunciar uma nova mensagem escatológica.

É claro que não podemos deixar de pensar na existência de outras condições sócio-políticas para sedimentar a incrível sedução que acom-panhou a mensagem salvítica anunciada pelo cristianismo primitivo.

A miséria tinha atingido um patamar insuportável para o povo ouvinte das primeiras mensagens cristãs. Há 1900 anos, a população do Império Romano foi calculada na ordem de 65 a 70 milhões e somente perto de  quatro milhões, segundo os dados demográficos levantados pelo imperador Augusto, eram cidadãos romanos.

Os hebreus, no Oriente helênico, que já adoravam um Deus único centenas  de anos antes, chegavam à proporção significativa de um para cada dez habitantes daquela região.

Destituídas do mínimo para sobreviver como escravos, durante muitas gerações as oposições foram impiedosamente esmagadas pelo poder dominador. Elas resistiram utilizando artifícios de simulação, quase sempre refugiadas em guetos, onde a organização social rígida em imperativa para a  sobrevivência do grupo.

As comunidades hebraicas faziam parte desse bizarro mosaico de mentalidades. Elas reproduziram, ao longo de três mil anos, as próprias experiências sagradas através de três elementos de coesão social organizados pelos seus representantes da Divindade: a fé monoteísta, a sinagoga e sábado. Esse conjunto, em grande parte oriundo da memória oral, foi transcrito para os livros sagrados (Tora e Talmud) e utilizado como instrumento de organização social.

A tradição semita vivia uma religião de fé em Deus e a esperança no futuro capaz de modificar. Ò intolerável jugo estrangeiro contestador dos elementos da coesão social.  A promessa de Divindade aos profetas transformou os hebreus no povo do futuro que desfrutaria da terra prometida farta que mana leite e mel. Assim, o judaísmo rompeu com n tempo cíclico e estabeleceu a crença num tempo final.

E evidente que as idéias religiosas se manifestam no coletivo de modo sincrético, sem que se possa estabelecer limites precisos onde começa uma expressão de religiosidade e termina a outra. O cristianismo primitivo, nascido no seio das mamas populares perseguidas pela impla-cável dominação romana, foi aquecido pelas crenças mais antigas do judaísmo, que continuava esperando o seu herói mítico de salvação (Jo 1,49):

 

Então Natanael exclamou: Rabí, tu és o filho de Deus, tu és o Rei de Israel?”

 

Ainda nesse ponto de sua história, o cristianismo era uma manifes-tação religiosa de povos oprimidos, desesperados para minorar os sofri-mentos, porque estava pleno de sincretismo, onde os curadores e adivi-nhos de todos os matizes tinham espaço.

Era indispensável que fosse consolidada a mudança. Os primeiros padres da cristandade, cumprindo o processo de substituição cultural do velho pelo novo, deslocaram grande parte da antiga escatologia ju-daica e passaram com nitidez de uma concepção coletiva para valo-rizar mais o individual, onde a confissão a Jesus era a única salvação.

Com a sua passagem de religião dos desprotegidos para dar legitimidade ao dominador, iniciou o longo processo de dominação por meio da  catequese. Todos e tudo que se colocavam entre o Cristo crucificado e os projetos dominadores deveriam ser eliminados.

O pajé, esteio da coesão tribal, foi uma das tristes vítimas dessa escolha. Apesar de ter sido brutalmente desmoralizado pela sanha colonial durante quatro séculos, continuou resistindo nos . confins das flo-restas.

O padre salesiano Bruzzi, depois de conviver durante mais de duas décadas num povoado do grupo Tukano, no Amazonas, é testemunha viva desta resistência:

 

 “É talvez o maior sacrifício que a catequese católica impõe aos indígenas cristãos, a renúncia à crença no poder do pajé. Em alguns casos, só o consegue parcialmente”.

 

Uma parte significante do clero católico continua combatendo os curadores populares nascidos das tensões sociais. Sem compreendê-los como agentes de coesão social, não está conseguindo processar uma linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos nascidos nas contradições do subdesenvolvimento.

Essa dissociação entre a hierarquia eclesiástica e a concepção do sagrado das massas culminou, na Idade Média, com o brutal assassinato de milhares de pessoas nas fogueiras de lenha verde, acesas pela insa-nidade da Inquisição.

Nesse período, entre os anos 900 e 1600, quando se consolidou o cristianismo como religião dominante, no Ocidente, o processo abando-nou os cuidados coletivos com a saúde, alimentação e higiene reco-mendados pelos livros sagrados do judaísmo e pela cultura greco-roma-na. Como a nova religião não teve tempo para sedimentar outras regras, a maior parte das massas populares ficou sem parâmetros para enfrentar as dificuldades resultantes da urbanização desordenada.

O triste resultado se revelou no tipo de arquitetura centrada sobre a catedral com o completo desprezo das regras de saúde coletiva  e pessoal adotadas no mundo greco-romano. Provavelmente, este fato contribuiu para a disseminação das grandes epidemias que sangraram a Europa no mesmo período.

Com a mesma abordagem é também possível enfocar alguns aspectos do processo colonizador brasileiro, onde o sincretismo religioso se fez muito forte todos os estratos sociais.

A força dos núcleos de resistência à substituição cultural imposta pelo colonizador cristão no Brasil, em diferentes épocas, obedeceu às tendências das quatro tradições religiosas lideradas pelos  seus agentes, atuantes  simultaneamente como curandeiros e adivinhos, mais ou me-nos valorizados ou combatidos pelo poder dominador de acordo com os componentes da tensão social:

 

  1. Indígena – o pajé;

 

  1. Africana – o pai de santo;

 

  1. Cristã – o padre;

 

  1. Kardecismo – o médium.

 

O catolicismo romano ao combater os curadores populares, nascidos nas tensões sociais e sem compreendê-los como agentes da coesão social, não está conseguindo processar uma linguagem sedutora capaz de satisfazer os atuais desejos erguidos pelos agravos da miséria social que domina o sub-desenvolvimento.

A persistência desse divórcio entre a hierarquia eclesiástica e a concepção do sagrado das massas populares é, em parte, responsável pelo esvaziamento das paróquias. Por outro lado, se reflete na gradativa diminuição da fé cristã católica.

Do outro lado, as novas igrejas cristãs, frutos da atomização do poder da Cúria Romana,  divulgam mensagens mais sedutoras, promo-vendo as sessões de curas e catarses ao som dos cânticos de louvor à divindade, entoados por milhares de fiéis.

Com essa estratégia, elas penetram com maior facilidade na vontade popular e ocupam os espaços sócio-políticos nascidos do de-sencanto, da insatisfação e da miséria.

Os curandeiros e adivinhos tomaram-se elementos de coesão social ao aperfeiçoarem o trato com o sagrado, resistirem às conquistas e impulsionarem o homem e a mulher em direção da liberdade.

 

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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