Disciplina Epistemologia da Saúde

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Um dos pontos mais complexos no âmbito das trocas e paixões humanas é por que e como se processou o ordenamento, visando à submissão, no seio das sociedades. Todavia, existe um ponto comum: tem sido obtida com o mais forte oferecendo o prazer aos aliados e aos resistentes, a dor.

Contrapondo-se aos outros carnívoros, os humanos têm desejos filogenéticos funcionais, nem sempre adequados à rigorosa obediência ditada pela sociedade urbana. O cerne disciplinador pode ter surgido em torno da exigência de domar as múltiplas condutas, variáveis entre a unicidade libertária e a atração tutelar. Essa diversidade, exercida pelo homem e pela mulher, sempre representou obstáculo para a ordem consensual.

Traçadas pela ficção, em consonância com as memórias-sócio-genéticas, tanto no espaço profano quanto no sagrado, as regras foram organizadas através daquilo entendido, pelos dominantes legisladores, como significantes reais e alegóricos do deleite — gerando prazer — e do infortúnio — causando dor. Sob essa égide, pensamento e conhecimento conjugam-se em fina sintonia.

Os corpos vivos, dos espongiários aos mamíferos, são recobertos por tecidos especializados, em muitos milhões de anos, para reagir às agressões externas de origem física, química ou biológica. Nos cordatos (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos), com maiores e melhores meios para mudar a posição do corpo, a fuga da dor por meio do movimento corporal adquiriu importância fundamental na conservação da vida e reprodução da espécie.

As peles que revestem os corpos desses animais com coluna vertebral, possuem incontáveis estruturas moleculares específicas, interligadas pelas vias sinápticas aferentes vertebrais, fixando as porções corporais mais periféricas ao sistema nervoso central, encarregadas de detonar os alarmes inatos contra a dor (terminações nervosas livres), o frio (corpúsculos de Krause) e o calor (corpúsculos de Ruffini). Do mesmo modo, as sensações agradáveis são recebidas pelos mesmos elementos e identificadas, no córtex cerebral, como prazer.

Enquanto a dor induz a repulsa, o prazer aciona os mecanismos neurológico-musculares para afrouxar as tensões. A ontogênese, repetindo a filogênese, formou-se com a prioridade de enfrentar o sofrimento e receber, com harmonia, as sensações prazerosas.

Não há dúvida do quanto é evidente como a dor lacerante contribui para alterar as emoções, deter e amedrontar qualquer ser vivo multicelular.

Nesse extraordinário processo humano, edificado para fugir da dor e aproximar do prazer, como um dos principais pilares da conquista do planeta, está inserido a luta atávica para compreender e vencer a doença, na medida em que ela tem representado, ao longo de milhares de anos, o mais importante fato material, nem sempre visível, causador de dor física no próprio corpo. Aliada à dor física pessoal, no coletivo, a dor histórica representando o grito humano pela vida, pela liberdade e pela dignidade, rompem as correntes que prendem o homem e a mulher ao sofrimento.

A Medicina, enquanto especialidade social, tem respondido a essa determinação de fugir da dor ou da ameaça do sofrimento: é possível identificar o conjunto de ações e saberes dirigidos para diminuir a abstração e aumentar a materialidade com o objetivo de apreender a saúde e a doença. Por outro lado, ao longo desse processo, não há como duvidar que tanto essa abstração quanto essa materialidade, muitas vezes sem poder diferenciar onde começa uma e termina a outra, tem contribuído para diminuir a dor pessoal e coletiva.

Este livro, como uma proposta teórica, trata desse tema: a fantástica persistência humana para diminuir a abstração e aumentar a materialidade da saúde e da doença com o objetivo de reproduzir os saberes para controlar a dor, por meio de, no mínimo, três determinantes oriundas do conhecimento historicamente acumulado:

  1. Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;
  2. Estabelecer os parâmetros do normal e do patológico;
  3. Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.

 

Simultânea e constantemente, durante o mesmo período, outro conjunto de pensamentos e ações expressos por pessoas que expressam idéias e crenças religiosas organizadas, na maior parte das vezes, em torno das religiões politeístas e monoteístas, têm defendido manter a abstração na abordagem da saúde e da doença. Desde o passado muito distante, não pode ser, exclusivamente de ordem social, a constância desse aspecto da compreensão pessoal e coletiva da cura das doenças, isto é, a certeza de elas poderem ser tratadas pela ação divina, de modo instantâneo, mudando as normas das relações físicas entre os corpos. Por essa razão, defendemos as determinantes teóricas — memórias-sócio-genéticas — como vetores físicos corporais capazes de manter o processo atávico de fuga da dor.

Pela imensa grandeza biológica, já que respondem pelos mecanismos natos e sociais de sobrevivência, as memórias-sócio-genéticas estão distribuídas no genona e não em alguns genes específicos. Como constituem parte da herança filo e ontogenética, são ser divididas:

  1. Memórias-sócio-genéticas pré-neocortical, oriunda da filogenia comum, presentes nos animais sem neocórtex;
  2. Memórias-sócio-genéticas neocortical, processadas durante a ontogênese, exclusiva dos animais que possuem neocórtex.

O movimento social em torno da fuga da dor, durante o processo histórico que proporcionou o sedentarismo dos nossos ancestrais, com clara participação das memórias-sócio-genéticas, delimitou três tipos de Medicinas — divina, empírica e oficial — todas mantendo agentes específicos:

  1. Medicina divina: deuses e deusas taumaturgos;
  2. Medicina empírica: homens e mulheres que acreditam possuir o dom de curar, sempre ligado às crenças e idéias religiosas;
  3. Medicina oficial: médicos.

Enquanto as Medicinas divina e empírica, muitíssimo mais antigas, oriundas na pré-história, mantidas pelo pensamento religioso, admitem a doença de natureza sagrada e somente o tratamento também sagrado seria efetivo, a Medicina oficial, com registro a partir das primeiras cidades, articula-se ao processo social por meio de propostas teóricas para desvendar a materialidade da doença.

Não há como negar, no passado e no presente, nos quatro cantos do planeta, a significativa presença de homens e mulheres, distribuídos nas camadas sociais dos mais ricos e dos mais pobres,  que valorizam de modo exclusivo a abstração e acreditam poder mudar, instantaneamente,  as leis físicas que regem as relações entre os corpos e as coisas, interrompendo o curso de certas doenças  e empurrando  os limites da dor e da morte. Infelizmente, mesmo com a presença de incontáveis pessoas que procuram e acreditam na veracidade dessas ações para curar os sofrimentos, não tem sido possível a reprodução em laboratórios, sob condições controladas, desses saberes anexados às crenças e idéias religiosa.

Entre muitos aspectos e conflitos da ordem e da desordem da História da Medicina, é possível identificar com clareza que esse processo histórico de aquisição dos conhecimentos, com o objetivo de controlar a dor e empurrar os limites da morte, tem se desenvolvido, ora valorizando menos, ora valorizando mais, a materialidade da saúde e da doença.

Finalmente, também não há dúvida de que os pequenos e contínuos avanços obtidos ao longo da História da Medicina, para melhor compreender as doenças, só têm sido possível a partir da melhor compreensão do significado da materialidade — busca da dimensão da matéria onde o normal se transformaria em patológico.

 

 

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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