LIMITES DA CURA

Prof. Dr. HC João Bosco Botelho

Os seres vivos, dos unicelulares ao homem, manifestam-se na natureza em torno da complexa dispersão da multiplicidade das formas e das funções biológicas visíveis e invisíveis. É na maravilhosa identificação dos múltiplos semelhantes, porém únicos, que é possível aos sentidos humanos, tanto aos natos quanto aos cognitivos, apreender a partir da comparação e, a seguir, reproduzir, modificar e interpretar o observável. No outro pólo das relações sociais, onde a materialidade do visível aos olhos é superada pela abstração do imaterial, eterno e imutável, os conflitos pessoais e coletivos em torno da fuga da dor e da morte se entrelaçam com as idéias e crenças religiosas, ora com a ajuda do conhecimento historicamente acumulado, ora exclusivamente com o indescritível êxtase experiência com o sagrado.

Essa tem sido o processo dominante da História da Medicina: separar o abstrato do concreto, compreender a saúde e a doença na materialidade do observável e do reproduzível.

Dessa forma, o processo social de organização da Medicina como especialidade social formatou, entre a pré-história e os tempos atuais, três acessos às múltiplas compreensões da Medicina como especialidade social: Medicina-empírica, Medicina-divina e a Medicina-oficial. Sob muitas circunstâncias é impossível determinar os limites de onde uma começa a outra termina.

Apesar das duas primeiras serem muito mais anteriores, além de valorizarem muito mais a abstração em comparação à materialidade, não apresentam estrutura teórica de reprodução. Enquanto a Medicina-empírica está baseada no conhecimento historicamente acumulado, ligada à natureza circundante com a ajuda das crenças e idéias religiosas dominantes no grupo social, a Medicina-divina está, exclusivamente, atada à religiosidade, a partir do pressuposto de serem as doenças de origem divina e, assim sendo, só o poder divino pode mudar os cursos delas. Ambas, as Medicinas empírica e divina, sem dúvida, além de estarem estruturadas sobre a abstração, não apresentam estrutura teórica que possibilidade a reprodução dos saberes.

Por outro lado, a Medicina-oficial mais claramente ligada ao poder dominante, podendo em certa circunstância estar ou não associada às Medicinas empírica e divina, por meio de propostas teóricas tem feito esforço para entender, nominar e dominar tudo que pode provocar mudanças nos corpos, antepondo ações que podem ser reproduzidas nos quatro cantos do planeta contra a dor e a morte, isto é, valorizando a materialidade da saúde e da doença.

Se tomarmos como exemplo um grupo de pessoas adultas, ao longe o suficiente para vermos a forma ¾ o corpo ¾, poderemos caracterizá-lo, sem esforço, como homens e mulheres. Contudo, conforme nós nos aproximamos, perceberemos que continuam homens e mulheres, porém diversos entre si em cada porção, agora mais perceptível, dos seus corpos.

Hipoteticamente, se essas pessoas fossem submetidas à cirurgia da glândula tireóide, pelo mesmo cirurgião, ele perceberia que elas possuem as tireóides ¾ o órgão ¾ parecidas, porém com as formas diferentes, seja no tamanho, na cor, na consistência ou em qualquer outro parâmetro considerado. Mas, mesmo assim, com todas as diferenças de apresentações, nos níveis do corpo e do órgão, prosseguem como homens, mulheres e tireóides para os observadores.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dimensão órgão: tireóides com formas e funções diferentes

 

Continuando o desvendar da matéria, a mesma e incrível variação continua nas dimensões microscópicas ¾ a célula. Apesar de as células serem passíveis de reconhecimento como sendo originadas na tireóide, elas são absolutamente distintas entre si.

Com a atual tecnologia disponível é possível afirmar que essa extraordinária unicidade que molda o ser vivente, ocorre também no nível molecular.

O que torna mais fascinante o desafio de compreender os corpos humanos, na História da Medicina, é o fato de o patológico reproduzir, nas dimensões macro e microscópicas, um conjunto infinitamente maior da multiplicidade das formas e das funções quando comparado ao normal.

A perda do caráter individual dos seres vivos e dos objetos ocorre no nível atômico. Os corpos, órgãos, células e moléculas, normais ou patológicas, mantêm a multiplicidade, porém os átomos que os compõem não teriam diferenças entre si.

Esse é o ponto de encontro marcando os limites entre o mundo vivo e a natureza inerte!

Por um lado, existe a coisa, não reproduzível em si só, composta de átomos organizados em moléculas sem vida e, pelo outro, o ser vivo, podendo reproduzir-se, composto dos mesmos átomos organizando as moléculas, as células, os órgãos e os corpos.

Os elementos químicos da cadeia periódica são os mesmos para todos as coisas vivas e inanimadas do planeta. Isto quer dizer que a ciência admite as formas e as funções dos átomos de carbono, que compõem as moléculas do diamante, como sendo exatamente iguais às dos átomos de carbono, formadores das moléculas e das células do coração humano.

De certa forma, sem que necessariamente signifique melhor saber formal, quanto menor a materialidade na abordagem da doença, maior a abstração. Dito de outra forma, quanto mais fácil comprovar a materialidade das causas de uma patologia, menor a abstração.

Para aumentar a complexidade, ainda é possível perceber mais diferenças quanto a materialidade na dimensão do observável: se realizada no corpo morto ou no vivo. Então, as questões podem ser postas em torno de três aspectos fundamentais que regem as relações dos saberes com a matéria visível e invisível aos olhos desarmados e, especificamente, com a saúde e a doença:

1ª. Questão: composição material

da coisa  viva

 

  1. Corpo;
  2. Órgão;
  3. Célula;
  4. Molécula;
  5. Átomos;
  6. Partículas subatômicas.
2ª. Questão: visibilidade sem instrumentos da

composição material da coisa viva:

 

1.      Corpo – visível;

2.      Órgão – visível;

3.      Célula – invisível;

4.      Molécula – invisível;

5.      Átomo – invisível;

6.      Partícula subatômica – invisível.

 

3ª. Questão: visibilidade com instrumentos

da composição material da coisa morta:

 

1.       Corpo – visível;

2.       Órgão – visível;

3.       Célula – visível;

4.       Molécula – parcialmente visível;

5.       Átomo – invisível;

6.       Partícula subatômica – invisível.

 

 

Neste momento, cabe a pergunta fundamental: em qual dimensão do ser vivente a forma determinante da doença substitui a estrutura preexistente para que o normal se transforme em patológico? Ou ainda, de modo mais contundente e dramático: o normal e o patológico existem?

O que se torna mais extraordinário é o fato concreto de que, mesmo sem saber em qual dimensão da matéria o normal se transforma em patológico, existe um esforço articulado pelas três Medicinas, a divina, a empírica e a oficial, para lutar contra a dor e empurrar os limites da vida e, particularmente, da Medicina-oficial para estruturar teorias com o propósito de explicar o normal e o patológico.

Até os tempos do esplendor grego, no século 4 a.C., as três Medicinas se entrelaçavam, muito mais densamente, com as idéias e as crenças religiosas, oriundas dos tempos ágrafos, na compreensão da saúde e da doença, da vida e da morte, isto é, ocorria a clara predominância da abstração sobre a materialidade. A partir daquele período, na ilha de Cós, a Medicina-oficial representada pela Escola Médica de Hipócrates, sem abandonar a Medicina-divina, os teóricos gregos conceberam um sistema teórico baseado na realidade física do visível, para explicar a saúde e a doença.

Para melhor compreender essa questão essencial do processo histórico que procura diminuir a abstração e aumentar a materialidade da arqueologia da cura, utilizaremos a linguagem do filósofo francês Bachelar, para congelar, no tempo, as marcas que sulcam fundo os três cortes nos saberes médicos oficiais, em cerca de cinco mil anos de História:

 

Primeiro corte epistemológico:

Surgiu na Grécia antiga, no século 4 a.C., quando a doença foi abordada fora do domínio exclusivo da divindade, inaugurando a Medicina-oficial na dimensão do corpo. O grande e insuperável avanço, em relação à tradição anterior, reside no fato de que, pela primeira vez, estava estabelecido um sistema teórico coerente, capaz de explicar a doença, a saúde, a terapêutica e o prognóstico. A teoria era simples e competente: para cada um dos quatro elementos de Empédocles, a terra, o ar, a água e o fogo, existiria um humor corpóreo:

 

Ar

Fleuma

Água Bile amarela
Fogo Sangue
Terra Bile preta

 

Sem que até hoje saibamos, exatamente, o que representavam os humores, a idéia revolucionária dos médicos gregos da Escola Médica, na ilha de Cós, representados por Hipócrates, ficou conhecida como teoria dos Quatro Humores. Sob essa formidável concepção teórica, que dominou completamente as práticas da Medicina-oficial até o século 19, o corpo humano seria constituído de quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile preta.

O equilíbrio entre a quantidade e qualidade dos humores seria o responsável pela saúde. Ao contrário, os desequilíbrios entre eles provocaram as doenças. Como conseqüência imediata, esse sistema teórico permitiu aos médicos hipocráticos explicarem a origem das doenças e, pela primeira vez, iniciar o conflito de competência com a religião. A epilepsia, tida como doença de natureza divina, foi arrancada do domínio dos deuses. Dessa forma, estava deflagrada a vertente da compreensão da materialidade da saúde e da doença: o próprio corpo.

Para tratar qualquer doença, bastaria forçar o equilíbrio dos humores por meio de atitudes induzidas para eliminar os líquidos e excreções corpóreas. Os métodos de tratamentos da Medicina-oficial passaram a utilizar a sangria e as substâncias provocadoras do vômito, da diurese, do suor e da diarréia.

No século 2, o médico romano Cláudio Galeno reforçou a teoria hipocrática admitindo que a predominância constante de determinado humor provocaria um tipo específico de temperamento que marcaria, definitivamente, as relações entre a saúde e a doença das pessoas na vida social:

Os sistemas teóricos interligados e dependentes de Hipócrates e Galeno, capazes de explicar a saúde, a doença e a expressão do ser no social, mostraram-se tão adequados ao observável que dominaram as regras do diagnóstico, da terapêutica e as bases do ensino da Medicina-oficial no Ocidente durante vinte séculos. Na realidade, foi a primeira ação coletiva moldada em torno de proposta teórica para diminuir a abstração e aumentar a materialidade das doenças.

 

 

 

 

Fleuma
Fleumático
Bile amarela Colérico
Sangue Sangüíneo
Bile preta Melancólico

 

Primeiro corte epistemológico – o passado

 

Surgiu na Grécia antiga, no século 4 a.C., quando a doença foi abordada fora do domínio exclusivo da divindade, inaugurando a Medicina-oficial na dimensão do corpo. O grande e insuperável avanço, em relação à tradição anterior, reside no fato de que, pela primeira vez, estava estabelecido um sistema teórico coerente, capaz de explicar a doença, a saúde, a terapêutica e o prognóstico.

 

Ao lado dessa forte relação em torno das teorias hipocrático-galênicas que atravessaram a Idade Média, alguns religiosos, como Miguel Servet, estudante da Universidade de Tolousse, em 1530, imbuído da leitura dogmática bíblica, ao procurar explicação para o sopro de ar que deu vida ao primeiro homem, no livro Christianismi restituio, descreveu a pequena circulação cárdio-pulmonar.

Essa articulação entre abstrato e concreto, ou de outro modo, as amarras entre as Medicinas divina, empírica e oficial nunca deixaram de existir e de se manifestarem na vida social. Contudo, o que tem marcado as ações da Medicina-oficial é o empenho da aumentar a materialidade da abordagem da saúde e da doença por meio de claros objetivos que podem ser resumidos em:

  1. Entender, dominar e modificar a multiplicidade dinâmica das formas e funções do corpo;
  2. Estabelecer os parâmetros do normal e do patológico;
  3. Vencer as limitações impostas pelo determinismo da dor e da morte.

Parece lógico concluir que esses objetivos podem estar também presentes na Medicina- empírica e na Medicina-divina, contudo se estiverem, ficarão sob a predominante interpretação abstrata a partir da indissolúvel influência das idéias e crenças religiosas, onde a doença e a saúde são abordadas como sendo de naturezas divinas e, assim sendo, o tratamento seria, obrigatoriamente divino.

As propostas teóricas de Hipócrates e Galeno suplantaram todas as outras interpretações da doença e da saúde. Para que seja possível ter idéia da influência dessas teorias, no mundo cristianizado, é indispensável ressaltar que elas alcançaram a Europa e o Brasil-Colônia, entre os séculos 16 e 18, portanto quase vinte séculos depois do esplendor grego. A força histórica da proposta greco-romana pode ser comprovada no episódio que resultou na morte da Princesa Paula Mariana, filha do primeiro Imperador do Brasil, que durante vinte e três dias de febre e convulsão, antes do falecimento, foi submetida às chupadas de quarenta sanguessugas, onze vesicatórios, oito cataplasmas e sete clisteres, prescritos pela equipe de dez médicos que se revezaram à cabeceira real. De igual modo, os viajantes europeus, homens eruditos do século 17I que estiveram no Brasil, também assinalaram a fidelidade às teorias de Hipócrates e Galeno. Foi o caso do médico alemão Carlos Von Martius, em 1844, ao descrever os índios brasileiros — Por todas as qualidades inatas e habituais dos brasis, tanto psicológicas como físicas até aqui enumeradas, devemos necessariamente concluir serem estes homens de temperamento linfático — associando a teoria dos Quatro Humores de Hipócrates à teoria dos Temperamentos de Galeno, do século 1.

Cabe ressaltar que os métodos de tratamentos em voga na corte portuguesa e a interpretação de Von Martius, ambos baseados nas teorias de Hipócrates e Galeno, eram considerados verdades absolutas entre os intelectuais até a segunda metade do século 19.

 

Segundo corte epistemológico:

Ocorreu no século 17, quando a doença foi retirada da macroestrutura dos humores ligada à dimensão visível do corpo e dos órgãos, para a microestrutura por meio da micrologia ¾ a dimensão celular ¾, descrita nos estudos de Marcelo Malpighi (1628-1694), marcando a nova fase dos saberes da Medicina-oficial. A resultante foi a instituição da mentalidade microscópica, inaugurando o desvendar da materialidade no múltiplo das formas e das funções escondidas dos sentidos natos.

Não é demais assinalar que entre o primeiro e o segundo corte transcorreram quase vinte séculos. É possível que esse relativo longo período de tempo decorrido para consolidar os saberes contidos nos cortes, em parte, seja conseqüência dos empecilhos para utilizar, na prática, as novas idéias e a conseqüente e lenta mudança nas bases do aprendizado.

 

Segundo corte epistemológico – o passado e o presente

 

Ocorreu no século XVII, quando a doença foi retirada da macroestrutura dos humores ligada à dimensão visível do corpo e dos órgãos, para a microestrutura por meio da micrologia ¾ a dimensão celular ¾, descrita nos estudos de Marcelo Malpighi (1628-1694), marcando a nova fase dos saberes da Medicina-oficial. A resultante foi a instituição da mentalidade microscópica, inaugurando o desvendar da materialidade no múltiplo das formas e das funções escondidas dos sentidos natos.

 

 

Pouco a pouco, o estudo da célula para materializar a compreensão da saúde e da doença dominou os meios acadêmicos. Hoje, é o sustentáculo do atual ensino da Medicina-oficial. Mesmo nos hospitais mais bem equipados, os tratamentos dependem do diagnóstico microscópico quantitativo e qualitativo das células corporais. Isto significa que a estrutura teórica dos saberes médicos, pelo menos no Terceiro Mundo, em pleno final do século 20, ainda está alicerçada sobre os princípios teóricos da patologia celular oriunda do século 17.

Ao mesmo tempo, a micrologia inaugurou os objetivos da tecnologia hospitalar da modernidade: dotar os métodos auxiliares do diagnóstico com instrumentos para aumentar os sentidos natos do examinador. Os aparelhos — raios X, tomografia computadorizada, ressonância magnética, ultra-som e endoscopias — ao aumentarem a materialidade, desvendam o que o médico não pode ver, ouvir e sentir.

Terceiro corte epistemológico:

Aconteceu com os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822-1844), abrindo as portas da Medicina-oficial à dimensão molecular. Os hospitais do Primeiro Mundo já utilizam no cotidiano a Medicina molecular. Com o propósito de diagnosticar ou tratar certa doença, são analisadas as quantidades e as qualidades de uma ou mais moléculas, entre as centenas de milhares que compõem uma célula corporal. Infelizmente, a lenta disseminação dos saberes da Medicina-oficial na dimensão molecular, o alto custo e as dificuldades da tecnologia hospitalar de sair da célula para a molécula restringem esse avanço às ricas instituições dos países industrializados.

Assim, o projeto genoma, as técnicas de clonagem e manipulação genéticas, como partes e desdobramentos da mentalidade molecular, compõem novos instrumentos para aumentar a materialidade e diminuir a abstração no trato da saúde e da doença. Como uma das conseqüências mais temidas, a clonagem estreitou, geneticamente, a multiplicidade das formas e das funções, criando em laboratório, seres idênticos, a partir de células retiradas de um indivíduo adulto. Apesar de assustador, o produto do clone não humano, do mesmo modo como todos os animais nascidos da reprodução sexuada, ao longo do processo de amadurecimento, sofrerá a incisiva influência do social. Desta forma, pelos menos no momento, não existe perspectiva de eliminar a multiplicidade geradora das respostas do ser vivente frente aos desafios da sobrevivência.

Terceiro corte epistemológico – o presente

 

Aconteceu com os estudos do frade agostiniano Gregor Mendel (1822-1844), abrindo as portas da Medicina-oficial à dimensão molecular. Os hospitais do Primeiro Mundo já utilizam no cotidiano a Medicina molecular. Com o propósito de diagnosticar ou tratar certa doença, são analisadas as quantidades e as qualidades de uma ou mais moléculas, entre as centenas de milhares que compõem uma célula corporal.

 

Mesmo sendo tecnicamente possível, a clonagem de seres humanos é inconcebível. Não existem, inclusive, instrumentos das linguagens oral e escrita para preencher a repulsa contra o alucinado ensaio de eliminar a principal característica do planeta: a multiplicidade. Por outro lado, infelizmente, mesmo com o repúdio da maior parte da humanidade e dos mais importantes centros de saber do planeta, é possível já existirem muitos projetos de clonagem humana em andamento.

 

Quarto corte epistemológico – o futuro

Não há como duvidar da histórica tendência de procurar a materialidade da saúde e da doença nas dimensões cada vez menores da matéria do corpo vivo ou morto. Dessa forma, a próxima conquista, o quarto corte, estará ligado, certamente, ao maior domínio do binômio massa-energia que envolve os elétrons, os prótons, os nêutrons e as partículas subatômicas e sustentam as formas e as funções dos seres vivos.

A Medicina-oficial na dimensão atômica deslocará e substituirá os conceitos da Medicina-oficial nas dimensões celular e molecular, do mesmo modo como aconteceu com os humores hipocráticos e os temperamentos galênicos e, talvez, desvendará os enigmas que persistem e intrigam, aqui e acolá, a Medicina-oficial no trato com a Medicina-divina e a Medicina-empírica.

Como a análise retrospectiva induz, sempre, à crítica do presente, é importante refletir, continuamente, sobre os limites da cura de ontem e de hoje. Se nós somos capazes de rir dos conceitos teóricos hipocráticos e galênicos, não devemos esquecer que, presumidamente, em futuro breve, também seremos motivos de zombaria.

Os claros limites da cura inseridos na incerteza em qual estrutura da matéria o normal se transforma em patológico (ou mesmo se o normal e o patológico são entidades reais) não são e nunca representaram empecilho para que o curador ¾ a pessoa interposta entre o doente e a doença ¾ encarne a esperança de interromper o sofrimento e prolongar a vida. Essa é a essência da arqueologia da cura das Medicinas divina, empírica e oficial, que nas respectivas estruturas conceituais, trabalham para superar a dor, buscar o prazer e aumentar os limites da vida.

Durante e entre os cortes nos conhecimentos que empurraram os limites da cura, os homens e as mulheres nunca deixaram de lado as suas devoções aos deuses protetores. Com diversas roupagens, os deuses continuam ocupando os espaços e ajudando na procura de um mundo com menos dor.

Em trinta e cinco anos, em atividades docentes e assistenciais, realizamos em torno de cem mil consultas médicas e quatro mil cirurgias. Na grande maioria dos casos, os doentes seguiram as receitas médicas e concordaram com as cirurgias. A nossa relação de confiança com os pacientes e seus familiares ficou incorporada no cotidiano profissional de forma consistente. Contudo, em muitos momentos, eu tive dúvidas de estar, realmente, contribuindo para o bem-estar deles. Nessas ocasiões, ao nos comportarmos politicamente corretos com as normas técnicas, deixamos de ouvir como deveríamos o sofrimento determinado pelo tratamento proposto pela academia.

A expressão em muitos momentos está sendo usada porque, quando se tratava de pacientes portadores de doenças pouco compreendidas e cheias do pressuposto da dor incontrolável, como em certos tipos de cânceres e nas patologias moduladas pela defesa imunológica, mesmo com o domínio das publicações internacionais mais recentes, com a materialidade é inconsistente, sentíamo-nos incompetentes para diminuir o sofrimento dos enfermos.

Nessas horas, tínhamos a certeza de que a forma determinante desses distúrbios está contida numa dimensão da matéria ainda não desvendada pela Medicina-oficial. Entre esses doentes, após explicarmos as nossas grandes limitações, alguns nos perguntavam sobre a busca de alternativas fora da Medicina-oficial. A nossa resposta continua sendo, sistematicamente, a mesma: os limites da cura são imprecisos.

É verdade que, nos primeiros anos de formado, eu não prestava atenção nessas questões. Considerava-as de pouco importância para o cirurgião bem formado. Contudo, com o passar dos anos, cada vez mais ciente dos estreitos limites das fronteiras do saber, fui impulsionado pelo desejo crescente de compreender além das paredes da sala de cirurgia e buscar um sistema teórico capaz de explicar a intricada relação entre as Medicinas empírica, divina e oficial, isto é, as práticas de curas realizadas dentro e fora dos muros da Universidade.

Por outro lado, incontáveis enfermos, mesmo aqueles portadores de doenças de fácil controle, presentearam-nos com imagens e amuletos das suas devoções, acreditando poderem estar, com essa atitude, contribuindo para que médico e doente, juntos, alcançarem melhores resultados na cura.

 

Quarto corte epistemológico – o futuro

 

Não há como duvidar da histórica tendência de procurar a materialidade da saúde e da doença nas dimensões cada vez menores da matéria do corpo vivo ou morto. Dessa forma, a próxima conquista, o quarto corte, estará ligado, certamente, ao maior domínio do binômio massa-energia que envolve os elétrons, os prótons, os nêutrons e as partículas subatômicas e sustentam as formas e as funções dos seres vivos.

 

 

 

Com a ajuda da prática profissional acumulada e, hoje, mais cônscio da imensa falibilidade da Medicina-oficial, baseados na coerência e similitude das manifestações, eu defendo que as atitudes moduladoras da crença na cura, tanto do médico quanto do doente, não podem ser exclusivamente sociais. As correntes que ligam as expressões coletiva e pessoal de cura com o social, tanto no espaço profano quanto no sagrado, mostram-se tão sólidas que impulsionam a certeza de serem tão fortes quanto a cor da pele ou qualquer outra característica física determinada pela mensagem genética.

Nunca é demais repetir que a atual materialidade da Medicina-oficial na compreensão da doença e da saúde está longe de explicar a questão fundamental dos saberes médicos: em qual dimensão da matéria o normal se transforma em patológico, se é que existe normal e patológico.

É absolutamente plausível que a maior parte das dificuldades para compreender as doenças, notadamente, as que a Medicina ainda não conseguiu oferecer instrumentos de cura convincentes, esteja contida na impossibilidade de materializar as etiologias. A necessidade de materializar o invisível aos olhos, parece ser de natureza atávica.

Sem pretender extrapolar as interligações teóricas desta proposta e nem diminuir o mérito dos avanços obtidos com as publicações freudianas, no estudo dos distúrbios do comportamento, parecer ser inegável que a teoria psicanalítica têm perdido a força frente aos avanços da neurofisiologia e da  neurofarmacologia. Esse fato pode ter sido conseqüência, entre outros fatores, do maior movimento das relações sociais, isto é, não há mais tempo disponível nem dinheiro para oferecer as demoradas psicanálises, e, principalmente, da inexistência de comprovação  física, no sistema nervoso central, das áreas responsáveis pelo ego, super ego e id.

Nunca é demais assinalar, que a maior confiança coletiva às propostas de tratamentos da Medicina oficial, está contida nas doenças passíveis de reconhecimento material, sem abstração, do diagnóstico até o tratamento. Contudo, nas doenças não traumáticas, essa competência médica é dependente de muitos outros vetores que envolvem o elemento causador da doença e a imunidade do doente:

Competência do atual conhecimento sobre as doenças

não traumáticas em paciente com imunidade normal

 

Doenças infecciosas causadas por fungos e bactérias

 

Incompetência do atual conhecimento sobre as doenças

não traumáticas em paciente com imunidade normal (?)

 

Doenças infecciosas causadas por vírus

 

Incompetência do atual conhecimento sobre

as doenças em paciente imunidade anormal (?)

 

Doenças infecciosas causadas por bactérias, fungos e vírus

 

 

Absoluta  incompetência da Medicina oficial

 

1.Como aparece a primeira célula do tumor maligno;

2. Previsão do infarto do miocárdio;

3. Como ocorrem as doenças imunomoduladas;

4. Alteração da forma do SNC nas psicoses;

5. Diferentes manifestações da mesma doença;

6. Em qual dimensão da matéria o normal se transforma em patológico?

7. Na dimensão atômica existirá o normal e o patológico no  mesmo pressuposto      celular e  molecular ?

 

 

 

 

Extraordinariamente, esses fatos que traduzem a competência ou não das práticas médicas, nunca foram e não são, desde os tempos ágrafos, estorvo para que houvesse esmorecimento na luta coletiva contra a dor e morte prematura.

Essas históricas dificuldades da Medicina-oficial, para entender as incontáveis materialidades das doenças, não oferecendo respostas convincentes para diminuir o medo da morte e da dor fora de controle, associadas ao reduzidíssimo número de médicos, em comparação às necessidades mundiais, constituam parte das razões, pelas quais, as pessoas continuam procurando as práticas de curas oferecidas pelas Medicinas divina e empírica.

Não há como negar que, em todos os cantos do planeta,  existe número incontável de pessoas que acreditam e procuram homens e mulheres expressando diferentes formas de idéias e crenças religiosas, creditados como curadores que atuam na absoluta abstração e fora de todas as estruturas da Medicina oficial. Pelo menos nos centros urbanos, onde existe a oferta competente de serviços de saúde, na maior parte dessa complexa rede de comunicação eles — os curadores da Medicina divina e seu clientes — é entrelaçada em torno de doenças ainda pouco compreendidas pela ciência — tumores malignos, imunopatologias e distúrbios comportamentais.

Sob essa perspectiva, sendo ou não crente nos poderes curadores dessas pessoas, quando alguém sofre uma fratura do úmero, o saber comum é suficientemente forte para indicar que o melhor caminho é procurar o atendimento de urgência de algum hospital, para o tratamento por meio da imobilização gessada. Contudo, se nesse caso, ocorrer alguma eventual complicação e os médicos não forem capazes de oferecer respostas competentes, é possível ocorrer a busca da solução nessas pessoas prontas para superar as falhas da Medicina-oficial.

Como esse fato é indiscutível e não compreendido pela estrutura que sustenta a Medicina como parte da ciência, torna-se necessário trazer a discussão às universidades, para que seja possível, em primeiro lugar, estabelecer parâmetros materiais mensuráveis se existem ou não razões que expliquem essa extraordinária crença coletiva e, em segundo lugar, se verdadeiras, estabelecer normas para a reprodução desses saberes.

O fato que chama a atenção, de imediato, em todas essas manifestações coletivas de fé  em torno das curas que violam todas as leis da física  — até o presente momento não há como entendê-las fora dos domínios da fé  —, diz respeito a familiaridade dos curadores divinos com as doenças excludentes do convívio social. Nenhum deles, também nos quatro cantos do planeta,  se vangloria de curar a carie, mas são capazes de oferecer alternativas de tratamento às dores causadas por ela.

Os trabalhos de pesquisa de campo, para registrar a ação desses curadores da Medicina divina, em Manaus, com o objetivo de revelar formas de tratamento fundamentadas na abstração e fora dos domínios da Medicina oficial, realizados pelos alunos do Curso de Medicina, da Disciplina História da Medicina, da Universidade Federal do Amazonas, entre 1990 e 2001, e da Universidade do Estado do Amazonas e do Centro Universitário Nilton Lins, entre 2002 e 2004, identificaram dezenas deles, atuando em clara influência de diferentes crenças e idéias religiosas, sem que o poder público exerça qualquer tipo de controle.

Nos trabalhos apresentados, muitos de qualidades excepcionais, é possível identificar três tendências influenciando a auto-apresentação dessas pessoas que se consideram especiais:

  1. Da Igreja católica: os curadores se identificam como agentes de reprodução dos poderes curadores de Jesus Cristo e/ ou de um ou mais  santos e santas;
  2. De algumas igrejas evangélicas: se referem, exclusivamente, como representantes dos poderes curadores de Jesus Cristo;
  3. De sincretismos:
    1. Resíduos das idéias e crenças religiosas de origem africanas, frutos do escravismo negro colonial: utilizam os deuses e deusas das religiões africanas, expressando poderes de curas, em claro sincretismo com os santos e santas do cristianismo;
    2. Resíduos das idéias e crenças religiosas dos povos indígenas, resultantes do genocídio dos habitantes da floresta: associam o conhecimento historicamente acumulado das plantas medicinais aos poderes dos santos e santos do cristianismo.

O local onde esses homens e mulheres que se consideram especiais atuam apresentam-se organizados, em lugares fixos como Igrejas, templos, residências do próprio curador e casas especialmente preparadas, na periferia e no centro de Manaus, expõem com  destaque, no local onde os ritos das curas são reproduzidos, grandes  figuras emolduradas de Jesus Cristo, santas e  santos cristãos e deuses africanos. Possivelmente, para aumentar o convencimento dos doentes no poder extraordinário do curador, alguns deles também emolduram, ao lado das figuras sagradas,  imagens do interior dos corpos, predominando o esqueleto e órgãos abdominais.

 

 

Ao afirmar que as dificuldades da Medicina-oficial na compreensão da materialidade da saúde e da doença constituem parte das razões pelas quais as práticas das Medicinas divina e empírica continuam de reproduzindo na malha social, em certas circunstâncias, independente das culturas formais e das riquezas acumuladas pelas pessoas, significa admitir que o componente social é apenas parte do conjunto que mantêm ativos os mecanismos neuro-endócrinos que impulsionam as pessoas na busca das soluções, concretas ou imaginárias, capazes de atenuar o medo da morte e da dor fora de controle.

Por outro lado, não há dúvida do quanto as emoções do cotidiano interferem com a saúde e a doença. Contudo, só no século XIX, o filósofo e médico inglês William James, descreveu com clareza, quanto as reações corpóreas são modificadas pelo medo. A descrição dele, plena de detalhes, foi melhor estudada do ponto de vista neurológico, na Universidade de Tübingen, na Alemanha, em 2002, pelo cientista Silke Anders. Os resultados obtidos a partir da leitura das imagens do PET-scan foram surpreendestes: em algumas pessoas, em situações visuais que provocam medo, o córtex parietal anterior esquerdo foi intensamente ativado (essa zona cerebral é ativada pelos movimentos do corpo); em outras, não ocorreu mudança. No primeiro grupo com maior sensibilidade aos movimentos, as reações neurobiológicas se passam como se essas pessoas ouvissem o próprio corpo; no segundo grupo, prestam menor atenção ao corpo. A explicação residiria na possibilidade do córtex parietal, intensamente ativado, enviar impulsos nervosos à amígdala que, por sua vez, interpreta como sinal de alarme e retransmite às outras áreas do córtex envolvidas com o sentimento do medo.

É certo que está apenas começando a compreensão, em nível genético-molecular, de como se passa no sistema nervoso, as emoções e os sentimentos, Um dos mais respeitados estudiosos do tema, o médico português, radicado nos Estados Unidos, Antonio Damásio, pesquisador da Universidade de Iowa, procurou distinguir a emoção do sentimento, como forma de explicar a consciência de si, do próprio corpo, sconstruída a partir dos registros armazenados::

  1. As emoções seriam um conjunto de reações corporais, algumas de natureza muito complexa, em respostas aos estímulos externos. Assim, entre as mudanças corporais mais fáceis de serem reconhecidas, de naturezas automáticas e inconscientes, o medo determina alterações no ritmo cardíaco, acelerando-o; na salivação, diminuindo a quantidade de saliva, tornando a boca seca; empalidece a pele, em conseqüência da vasoconstricção e os músculos se contraem de forma tão intensa que, após a resolução do medo, permanece a dor muscular durante alguns dias;
  2. Os sentimentos nascem a partir da consciência das emoções corporais e, em seguida, são codificados e armazenados, possivelmente durante toda a vida, por mecanismos moleculares ainda desconhecidos.

Contudo, é possível acrescentar outros elementos às propostas de Damásio na medida em que a existência desses mecanismos molecular desconhecidos — percepção, armazenamento e recuperação — estão intimamente associados à herança genética, não há como deixar de associar o social ao genético na busca de novas explicações.

Também por essa razão, as emoções e os sentimentos que guardam e reproduzem as idéias e crenças religiosas, podem estar articuladas num tempo perdido do passado humano, quando se formaram os medos das dores e das mortes.

Assim, é possível articular uma nova categoria — a neuroteologia — oriunda das emoções e sentimentos armazenados nas memórias-sócio-genéticas, onde o Deus genético está presente e vivo, nos quatro cantos do planeta, como a mais importante construção humana da proteção pura.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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