Prof. Dr. HC João Bosco Botelho
Da medicina praticada pela massa popular até o Século V, cristã ou não, restaram poucos registros. A maioria deles está nas relações médico-míticas do Novo Testamento. Da exercida entre os detentores do poder econômico e militar, o conjunto de informações é tão grande que ficou conhecido na historiografia como medicina romana.
É importante que se saiba que esta última foi realmente exercida em benefício de uma parcela muito pequena da população, representada pelos nobres, militares e ricos comerciantes.
No período compreendido entre os primeiros anos da era cristã e as invasões dos bãrbaros no Império Romano, é possível que a medicina praticada pelas massas populares fosse composta de uma complexa relação de fatores que envolviam cinco diferentes aspectos: metafórico, taumatúrgico ético, doutrinário e técnico.
1) METAFÓRICO: é a própria apresentação de Jesus como médico (Mt 9,12; Mc 2,17; Lc 5,31) que foi aumentada nos escritos das fontes cristãs de Inácio de Antioquia (? – 110), Tertuliano de Cartago (? – depois de 220), Cipriano de Cartago (? – antes de 215) e Orígenes (? – 253).
É importante conhecer a distribuição geográfica da catequese realizada poe esses padres da Igreja. As suas influências alcançaram um extenso território da Ásia Menor, península itálica e África.
É inquestionável a associação cristã da doença com o pecado. Este fato resultou em inúmeras pinturas metafóricas do cristianismo como religião dos doentes.
2) TAUMATÚRGICO : foi resultante do sincretismo judáico pós-exílio em adotar a possessão demoníaca como a causa do aparecimento das doenças. A partir do momento em que esta possibilidade foi aceita como verdade, surgiu a necessidade da cura milagrosa e do agente viabilizador dela.
Ainda segundo o discurso cristão, jesus durante a sua pregação, encontrou vãrios doentes no seu caminho. Tendo comprovado a existência do poder de Satanás sobre os homens (Lc 13,16), sentiu compaixão (Mt 20,34) e agiu expulsando os demônios dos que estavam enfermos (Mt 8,16).
Os milagres da cura representam a visão escatológica da Igreja de Jesus, isyo é, antecipam o estado de perfeição que os homens encontrarão no Reino de Deus, conforme as profesias.
As referências do Novo Testamento são claras, Jesus veio ao mundo como médico dos pescadores (Mc 2,17) e também como médico para acabar com as enfermidades (Mt 8,17). os quatro evangélhos contêm trinta e seis relatos de curas, milagrosas.
A descrição das curas taumatúrgicas no Novo Testamento são das mesmas patologias já consideradas como de origem divina muitos séculos antes do aparecimento do cristianismo.
3) ÉTICO: dos dois aspectos anteriores, nasceu a concepção ética que marcou profundamente a prática médica que permaneceu viva no mundo cristão até nos nossos dias.
A medicina passou a envolver um sentimento de ajuda ao enfermo como um dever religioso e perdeu grande parte das conquistas racionais introduzidas pela escola de Cós, entre os séculos V e III a. C. hoje é relativamente comum, mesmo entre pessoas que possuem a visão crítica do todo social, a aceitação da premissa ridícula de que a medicina é uma atividade de caridade.
Apareceu a necessidade de construir lugares destinados ao tratamento dos doentes, de preferência dentro dos mosteiros. O resultado desastroso desta iniciativa, de manter o conhecimento médico sob o domínio da Igreja, dificilmente será avaliado.
A introdução do consolo aos moribundos e incuráveis, a valorização da dor como alternativa de tratamento. A oração, os exorcismos e a extremo-unção foram definitivamente adotadas.
4) DOUTRINÁRIO: a doença como fruto do pecado foi fundamentado por Gregório de Nusa (? – 394) que aplicou os ensinamentos de Platão e de Galeno, o mais famoso dos médicos romanos, na elaboração de uma antropologia do pecado para explicar a cura das doenças.
A partir desta fase, começou. Baseados no neoplatonismo, efervescente na época, Anastácio (? – 373) e Gregório desenvolveram uma explicação da origem da doença na história da humanidade e o seu valor na criação do homem. Eles concluíram que Adão, foi o arquétipo ideal da espécie humanae que antes do pecado original não existia qualquer doença. Legitimaram, deste modo, a milenar associação entre enfermidade e castigo divino.
5) TÉCNICO : o aspecto técnico da medina com o cristianismo foi ligado a TEKHNÉ do politeísmo grego. Alguns cristãos ortodóxos como Taciano (110-175) e Tertuliano (? – depois de 220), chegaram a afirmar ser ilícito o uso de remédios prescritos pela TEKHNÉ. Taciano aceitava o uso das drogas nos pagãos, mas não nos cristãos. ” A cura com remédios, em todas as suas formas, é fruto do engano. se alguém é curado pela fé na matéria, abandona o popder de Deus” (Orat. ad Graecos, 20).
Existiu outra corrente com idéias completamente opostas, conforme relatou Eusébio (? – 340). Este grupo cultivava a filosofia aristotélica, a geometria de Euclides, a ciência natural e a medicina de Galeno. Chegou a afirmar textualmente : ” Galeno era venerado por alguns deles«« ( Hist. ecles. V, 1).
A adoção da id~eia grega da PHYSIS (JC, A medicina e a filosofia grega, 8.3.87), como O DIVINO, foi a causa da sansão eclesiática desses estudiosos que tentaram enfrentar a cúpula da hierarquia cristã naquela época.
Este tema foi reaberto por Orígenes (? – 253), que na sua polêmica contra Celso (sec. II) questionou se era Asclépio, o deus da medicina grega, (JC, A medicina e a mitologia grega, 22.3.87) ou Jesus quem curava as doenças.
Apesar das controvérsias entre as fontes históricas não cristãs, existe uma tendência para aceitar a possibilidade de que o cristianismo no seu processo de consolidação como religião, tentou conciliar a TEKHNÉ grega baseada na experiência e na ração com a idéia do Deus cristão pessoal, criador e transcendente.
É muito provável que tenha sido esta a herança cultural médico-mítica recebida pelos cristãos primitivos e que determinou marcada influência nas concepções do binômio saúde-doença do Novo Testamento.
Deste modo fica mais fácil compreender as frases : ” O FULANO ESTÁ DOENTE PELA VONTADE DE DEUS” ou ” O SICRANO FOI CURADO PELA GRAÇA DE DEUS” ainda presente nos dias atuais no mundo cristão.