ESCOLHA DO CURADOR: ELO DE CONFIANÇA

João Bosco Botelho Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

          A doença não existe só em si mesma.

          A conjunção simultânea dos sinais e sintomas que a doença determina no corpo ‑ a síndrome ‑, dá-lhe legitimidade e impõe necessidade da observação pelo médico ou outro curador. Essa situação assume, na prática, o ponto de partida para retirar as doenças das construções teóricas abstratas, mesmo as que não podem ser evidenciadas no corpo, nas menores dimensões da matéria, mas com a certeza que o empecilho é temporário.    

          A consequência da enfermidade, entendido como mal que deve ser extirpado, constitui o principal pilar que alicerça a abordagem do doente ao estruturar o elo de confiança junto ao médico, não somente como fenômeno biológico, mas também parte da totalidade sociocultural de ambos, do curador e do doente.

O controle de doenças, especialmente, de endemias e pandemias, esteve diretamente ligado a esse conjunto.

O historiador Jaques Le Goff[1] é enfático: “A doença não pertence somente à história superficial dos progressos científicos e tecnológicos, mas à história profunda dos saberes e das práticas ligadas às estruturas sociais, instituições, representações e mentalidades”.

          Um dos exemplos mais marcantes é a hanseníase. Essa doença começou a desaparecer da Europa, no século 17, trezentos antes do início do tratamento efetivo. Aqui reside um dos pontos cruciais do atual entendimento da medicina enquanto pratica social: é preciso que as escolas de medicina repensem as metodologias para que os alunos compreendam também a dimensão social da doença.

          A análise cultural das doenças pode contribuir também ao esclarecimento como se processa a escolha que o doente faz na procura do médico ou do curandeiro, ambos consolidando o elo de confiança. 

Em algumas culturas, muito distantes entre elas, esse encaminhamento é concretizado de modo semelhante, isto é, as pessoas se baseiam no sistema referencial dos amigos e não somente em indicadores objetivos do êxito profissional.

          A milenar crença de a doença ser castigo divino ainda é marcante em muitas culturas.  Após a escolha do curador, não necessariamente do médico, as práticas se distanciam rapidamente. Em certo sentido, em especial na construção do elo de confiança, a medicina empírica pode ser mais competente se comparada à medicina oficial. O médico tende como resultado da sua formação desvinculada das relações socioculturais, abordar exclusivamente a doença em compartimentos corpóreos, enquanto que o curador empírico se envolve com o dominante cultural utilizando-o no objetivo de curar.

          E possível entender as práticas de curas sob três construções teóricas:

– Medicinas-divinas: fortificada nos templos dedicados às muitas divindades, cujos agentes de curas mágicas, sacerdotes e sacerdotisas, reconhecidos como intermediários dos deuses e deusas, ofereciam a cura magica por meio de rezas e encantamentos. Como uma facção muito forte, nesse conjunto, os adivinhos floresciam como alternativas para superar as adversidades futuras.

– Medicinas-empíricas: Desde o passado distante, nas primeiras cidades, também com forte partilha com as ideias e crenças religiosas, os agentes que compreendem parteiras, encantadores e benzedores, homens e mulheres sem escolaridade, exercem as práticas fora dos templos. Até hoje, em muitas linguagens-culturas, são respeitados e festejados. Particularmente importantes porque dominam certos conhecimentos historicamente acumulados dos recursos da natureza circundante. Heródoto[2], no seu extraordinário livro “História” descreveu um dia de festa, numa praça, na Mesopotâmia, quando doentes e curadores se encontravam, para buscar as curas das doenças nos exemplos de doentes que tiveram algo semelhante e se curaram fazendo ou bebendo isso ou aquilo. Ao cruzarem com alguém que apresentava sinais e sintomas de alguma doença que sabiam como curar, os curadores paravam para orientar, oferecer o tratamento.

          – Medicina-oficial: Muitíssimo mais recente em relações as anteriores, tanto na Mesopotâmia, quanto em outras culturas que se organizaram e prosperaram, no segundo milênio a.C., os processos dos aprendizados, amparados pelos poderes dominantes, na formação do médico, estavam nos templos. Se distanciou das anteriores porque é a única que construiu, desconstruiu e continua reconstruindo propostas teóricas para desvendar as origens das doenças nas dimensões cada vez menores da matéria viva. Historicamente, tem vencido as barreiras para diminuir a abstração e aumentar a materialidade.

           A compreensão das enfermidades como forma de desvio social foi teorizada Talcott Parsons[3] (1902-1976), em 1951, marcada pelo etnocentrismo americano da década de 1950 que legitimou os Relatórios Flexner (Abraham Flexner, 1856-1959), publicado em 1910, que fechou mais da metade das faculdades de medicina e reformulou completamente o ensino da medicina nos Estados Unidos, ao defender: “O paciente tem a obrigação de buscar ajuda técnica competente (fundamentalmente médico, o curador oficial) e cooperar no processo de recuperação”.

           Essa conduta estabeleceu a nova ordem médica, no Ocidente, com o tratamento e a morte conduzida nos hospitais e fixou relação de absoluta dependência entre o doente se o médico.

É evidente que esse diretriz Flexner-Parsons é inaceitável nos países onde a maioria esmagadora da população não tem acesso à água potável, ao esgoto sanitário e aos hospitais.


[1] LE GOFF, Jacques. Une histoire dramatique. In: LE GOFF, Jacques; SOURNIA, Jean-Charles. Les maladies ont une histoire. Paris. L’Histoire. Seuil. 1984.

[2] HERÓDOTO. História. São Paulo. W. M. Jackson (Clássicos Jackson). 1952. v. 23.

[3] PARSONS, Talcott et al. Papel e sistema social. In: CARDOSO, Fernando Henrique; IANINI, Octavio, org. Homem e Sociedade. 3. ed. São Paulo. Nacional. 1966.


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ANATOMIA: MARAVILHOSO DESVENDAR DO CORPO HUMANO

João Bosco Botelho Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A história evidencia com fartos registros que o estudo do corpo humano, escondido pela pele, encontrou dificuldades nas estruturas de poderes das crenças e idéias religiosas, notadamente, nas do monoteísmo. A formidável resistência está amparada no dogma de o homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, em Ge 1, 26, 27:

Deus disse “Façamos o homem à nossa semelhança, como nossa semelhança”, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas feras e todos os répteis que rastejam a terra

Deus criou o homem à sua imagem

à imagem de Deus ele o criou,

o homem e a mulher ele os criou.

          Os teóricos do monoteísmo obrigaram-se a contornar dois empecilhos refletidos na realidade: a forte tradição politeísta anterior e a diversidade humana. Foi precisamente nessa superação que a narrativa da criação se transformou no ponto culminante da epopéia teológica monoteísta.

          O cristianismo introduziu algumas mudanças importantes na estrutura do espaço sagrado oriunda do judaísmo. Ao contrário dos israelitas, acrescentou oposição entre o físico e o espiritual em Mt 10,28: Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aqueles que podem a alma e o corpo na geena.

O Homem plenamente concebido como dual, isto é, corpo e espírito, deveria ser o instrumento para servir a Deus em 1 T 5,23: O Deus da paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo.

          O Novo Testamento manteve do Antigo Testamento o mesmo sentido mítico em torno do sangue em Mt 16,17: Bem aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne ou o sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está no céu.

1 Cor 15,50: Digo-vos irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade.

Igualmente como o sangue dos animais sacrificados por Moisés inaugurou a Antiga Aliança entre Deus e o povo eleito, a Nova e Eterna Aliança foi sacramentada por Jesus com o seu próprio sangue em 1 Cor 11,25: Do mesmo modo, após a ceia, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei‑o em memória de mim.

            No islamismo, as barreiras seguiram atadas em construções semelhantes. A palavra correspondente de anatomia em árabe — “ilm al‑tasrib” — é precedida pela raiz “saraha” que significa trinchar, cortar, separar.

Como o islamismo entendeu a criação dependente e sequenciada em Sura 23,13‑14:

Depois, transformamos o esperma em coágulo, e o coágulo em óvulo, e o óvulo em osso, e revestimos o osso com carne. E era mais uma criatura. Louvado seja Deus, o melhor dos criadores), a inevitável intervenção do exame, dilacerando a carne, foi seguidamente impedido pela convicção de que a integridade do corpo era indispensável à condução da boa morte.

          Os médicos, cirurgiões, artistas e pintores, no Renascimento europeu, começaram um movimento conjunto para levantar o véu opaco cobrindo os músculos e as vísceras. A harmonia dos limites interiores do corpo desvendado encantou todos e fez vibrar também a caneta dos poetas e os pincéis dos artistas.

A sensibilidade de pintores extraordinários trouxe a forma anatômica escondida pela pele. Rembrandt, (1632), Lição de anatomia do Dr. Tulp.

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