ALGUMAS PRÁTICAS DE CURAS, EM PERNAMBUCO, DURANTE A INVASÃO HOLANDESA

João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A estrutura da Medicina, no Brasil colônia, durante a invasão holandesa, ficou encurralada entre três personagens:

– Poucos médicos portugueses, diplomados em Coimbra, com estrutura de ensino sob as garras da Santa Inquisição e fugindo da peste negra;

– O notável médico holandês Guilherme Piso e o grupo que o acompanhava;

– Os pajés, donos de incalculáveis saberes oriundos das experiências historicamente acumuladas, durante séculos, respeitados e temidos pelo poder de curar e fazer morrer.

Os relatos do médico holandês Guilherme Piso, desembarcado em Pernambuco em 1637, sob as ordens de Maurício de Nassau, avaliam com precisão a importância das personalidades por meio de dois livros espetaculares, escritos por ele, História Natural e Médica da Índia Ocidental (Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957) e História Natural do Brasil Ilustrada (Companhia Editora Nacional, Edição comemorativa do primeiro cinquentenário do Museu Paulista, 1948).

Para entender melhor a importância dos registros desse médico, fruto da Holanda predominantemente protestante, inseridos saberes de Hipócrates e Galeno, voltaram-se ao resgate dos formidáveis conhecimentos dos pajés e, consequentemente, evidenciando o desperdício desses saberes pelos médicos portugueses, ajudará desvendar as razões nascidas na experiência médico-hospitalar em Portugal, atada aos rigores das proibições eclesiásticas*.

*É possível entender as práticas da medicina sob três expressões, sob as respectivas maiores influências:

oficial, do poder laico dominante;

empírica, dos conhecimentos historicamente acumulados

divina, das ideias e crenças religiosas.

A desastrosa experiência portuguesa, para tratar os doentes em hospitais, na Alta Idade Média, ficou marcada pela desatenção aos preceitos médicos greco-romanos e fortemente atada à concepçãoteórica da caridade cristã. Por essas razões, os tratamentos em hospitais resumiam-se nas reclusões em albergarias que acolhiam hansenianos, vítimas de muitas doenças infecciosas, especialmente, as determinantes de feridas pútridas na pele, exalando odores fétidos, excluídos das famílias, mas amparados por ordens religiosas que dirigiam as multidões desorganizadas e famintas aos santuários cristãos de cura, notadamente o de Compostela, na Espanha, e aquelas estalagens.

A mudança desse modelo hospitalar às Santas Casas foi lenta. Somente no século XVI, pressionado pela grande quantidade de doentes que perambulavam nas ruas de Lisboa, a realeza iniciou o processo de organização em torno da caridade, como marco fundamental do aproveitamento social dos imemoriais elos da solidariedade em torno de um território protegido – o hospital – com garantia de retirá-los de circulação, diminuir as pressões sociais oferecendo casa e comida sem esforço.

A transformação do albergue dos séculos XII e XIII, como o lugar onde todos os doentes poderiam receber a caridade cristã, para o hospital no modelo das Santas Casas, representou o primeiro esboço do poder real em amenizar as elevadas tensões sociais na maioria da população, constituída de miseráveis e doentes crônicos.

Do mesmo modo, não seria possível esse avanço sem o suporte patrocinado pelas memórias sociogenéticas que guardam e reproduzem muitos movimentos da organização social, capazes de soarem alarmes nos sistemas nervosos central e periférico, como anteparo contra a dor e a morte prematura.

A primeira Santa Casa de Lisboa, fundada em 1498, certamentetambém representou um instrumento para exercer melhor o controle das três práticas de curas: religiosa, empírica e oficial, em muito menor proporção, em época em que a mortalidade provocada pela peste negra poderia desestabilizar o poder político-religioso.

Não é exagero articular sobre esse fato, a construção do hospital com o dinheiro das esmolas chamou atenção das autoridades do reino português para a incomensurável perspectiva monetária da caridade, agora sob dois aspectos: em primeiro, aumentar e centralizar a arrecadação das doaçõese, em segundo, diminuir as tensões sociais.

As enfermarias pavilhões das Santas Casas, dirigidas pelas religiosas das Ordens d’Assunção e do Espírito Santo, com os seus hábitos brancos, em clara associação simbólica ao sagrado imemorial, se reproduziram nas práticascurativas quatrocentista portuguesa,fortemente ligada ao imaginário cristão da caridade,nascidanaobediênciaaos preceitos bíblicos e nos interesses do Reino português.

Quando D.Joãoeasuacortedequinzemil desempregados chegaram ao Brasil, depois da fuga do exército napoleônico comandadas, encontraram situação caótica naassistência médica na Bahia e Rio de Janeiro.A Colônia não tinha médicos nem hospitais.É provávelque essas pessoas usuárias do fausto, sem assistência à saúde, tenham sentido pânico ao pensarem nas temerosas febres tropicais.

O pequeno número de médicos diplomados, isto é, agentes da medicina oficial, que trabalhava no Brasil,já tinha sido motivo de reclamação veemente do vice-reiLuís de Vasconcelos, em 1789, denunciando que só haviam quatro,insuficientespara sanar as queixas.

Essa situação de insatisfação, arrastando-se há mais de 150 anos, era do conhecimento daMetrópole. Imediatamente após a chegada do rei, expôs-se aforte necessidade para criação de estrutura de ensino capazdefazer frente à falta de médicos. A resposta do PríncipeRegente, futuro D. João VI, ocasionouacriação, pela Carta Régia de 18 defevereirode 1808,da Escola de Cirurgia da Bahia,nas dependências do Hospital Militar. Esse hospital iniciou asatividades em4 deoutubro de 1799, nas antigas dependências do Colégio dos Jesuítas, porordemde DomFernando José, governador da Capitania, após as denúncias das péssimascondiçõesda SantaCasadeMisericórdia deSalvador.Foiaalternativa encontrada para melhorar o atendimento da população, sem despender recursos à edificação de outro prédio.

Fato semelhante ocorreu no Rio de Janeiro, motivado em necessidades semelhantes. Poucos meses depois da chegada da corte ao Rio de Janeiro, aumentou a pressão para reestruturar com maior autonomia, várias repartições públicas para que pudessem suprir as dificuldades impostas pelo distanciamento da Metrópole e responder aos novos requisitos. Assim, passaram a funcionar no Brasil, algumas repartições que só existiam anteriormente em Portugal: Junta de Comércio, Fábrica e Navegação, Real Fábrica de Pólvora e a Escola Anatômica e Cirúrgica.

Em 1768, ovice-reiDomAntônioRolim de Moura Tavares,Conde de Azambuja, fundou, nas antigas dependências desativadasdoColégio dos Jesuítas, noMorrodoCastelo, o Hospital Real Militar e de Ultramar, onde,inicialmente,foram dadas as primeiras aulas de Medicina na cidade do Rio de Janeiro.

Apesarda valorização dos hospitais militaresparaa instalaçãodos primeiros núcleos de ensino da Medicina, oBrasil só teve o corpo de saúde no Exército, em 1849.Entretanto, precocemente na experiência colonial, osmédicos e cirurgiões-barbeiros que atendiam os militares feridos,estavamorganizados comoagregados às tropas e, mesmo sem patente, tinhamremuneração regular, contribuindo à organizaçãoprecoce dos hospitais militares.

A utilização dos médicosrecém-chegadose hospitaismilitares proporcionaram oinício do ensino da Medicina no Brasil.Tudo feito rapidamente para formar as bases da assistênciamédicapara D.João, D.Maria I, D. CarlotaJoaquina, os sete filhos e os quinze mil refugiados chegados nas trinta e seis embarcações escoltadas pelos navios ingleses. Seguiram-se as nomeações dos cortesões apadrinhados aoscargos de direção das academias médico-cirúrgicas do Rio de Janeiro e de Salvador.Para a primeira,ocirurgião-morJoséCorrêa Picanço, futuro barão de Goiana; à segunda, Manoel Vieirada Silva, Barão de Alvaiázere.

Para conseguir a matrícula no curso,não eranecessário muitodoteintelectual, bastava ao candidato saber lere escrever.O período de aprendizado durava cinco anos e,até 1832,as aulaseramministradasporapenasseislentesedois substitutos.O diploma recebido não oferecia os mesmos direitos dos de Coimbra. Esse reconhecimento parcial pelas autoridades portuguesas gerou vários atritos entre os estudantes e o físico-mor.Atensão ficouemnível crítico após asmanifestaçõesviolentas, forçandoo imperador D. PedroI assinar, em 1826, o decreto que dava às escolas de Medicina do Rio deJaneiro e da Bahia a autoridade para diplomar os seus alunos.

Esse decretoimperial, de 9 de setembro de1826, concretizouareformadas Academias Médico-Cirúrgicas, transformando-as nas Faculdades de Medicina.O acontecimento ficou gravado no quadro a óleo do pintor Manoel Araújo PortoAlegre, em exposição permanentenaUniversidadeFederaldo Rio de Janeiro, retratando o imperador D.Pedro I entregando opergaminho ao professor Vicente Navarro de Andrade, barão de Inhomirim.

Com o crescimento das atividades escolares e maior liberdade administrativa, açodou apressão pelasmelhores condições de ensino. Ao mesmo tempo, alguns administradores lúcidos estimularam o acesso aos progressos médicos em curso na Europa.

O produto final dessas desavenças resultou na maior participação dos alunos que passaramareclamar pormelhormaterialdidático,depois que ficou constatada a inexistência de livros editados emportuguês. Parasanara dificuldade, passouaser exigido o conhecimentodeinglêse francêspelosnovos alunos.Esse estatuto ficouconhecidocomobom será, porque além de exigir que os candidatos soubessem ler e escrever, acrescentava:

Bom será que entendam as línguas francesa e inglesa.

O curso passouà duração de seis anos e, pouco a pouco, os professores e alunos adotaram livros e procedimentos usados pela Universidadede Paris, considerada o melhor centrocultural. Os livros médicos apresentavam forte influência francesa, que permaneceria viva no século seguinte.

As diferenças no modo de vida e padrão de controleda saúdepúblicaentre a França e o Brasil, na segunda metade do séculoXIX,eram gritantes. Logo após a Revolução Francesa, foram tomadasvárias medidas sanitárias pelos médicosrevolucionários, responsáveis pela significativa diminuição da prevalência de doenças infecciosas.

Nessa mesma época, em que o incipiente ensino médico brasileiro adotava osmétodos da universidade francesa, já ajustada à realidade pós-revolucionária, as principais cidadesda França, Paris inclusive, ostentavam política de saúde pública e competentecontrole de algumas doenças infectocontagiosas.

Ficava, assim, muito difícil adaptar os conhecimentos médicosministradosna Universidade de Paris aos do iniciante curso de Medicina do Rio de Janeiro.Afora as grandes diferenças peculiaresacadasociedade, a França játinhaestruturado o ensino médico gratuito,voltado àspróprias necessidades, muitodiferentes das brasileiras.Por exemplo, Parisjátinha em torno deoitocentosquilômetrosde esgotosfuncionandoem galerias sob a maior partedacidade.A preocupaçãodasautoridadesfrancesas, naqueletempo, era como poderiamevitar que os dejetos fossem lançados diretamenteno Sena. NoBrasil, não havia o projetoparadiminuira prevalênciadeinúmeras doenças infecciosas e nenhuma cidade dispunha de rede sanitária adequada.

A análise da grade curricular da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, depois da reforma de 1832, assinada pela Regência Trina (Bráulio Muniz, Costa Carvalho e Lima e Silva), mostra que não havia referência ao estudo das condições sanitárias e das doenças infecciosas e parasitárias vividas pelo povo brasileiro. A atenção era projetada para as doenças mais comuns na Europa e na elite brasileira, sendo a sífilis, a mais temida.

As teses apresentadas pelosprimeiros alunosdiplomados podem servir comoindicador dessa realidade, refletindoodesajuste do ensino daMedicinacoma realidade social brasileira:

  1. Influência das religiões e, particularmente, da religião cristã sobre a saúde pública e privada;
  2. Breves considerações sobre o casamento;
  3. Medicina e ciência filosófica.

O Estado brasileiro, ainda fortemente atado aos resíduos daestruturacolonial,e sem condição paraatenderàsnovas necessidades que acompanharam as transformações sociais, plantou a semente do ensino particular no oitavo artigo do novo regulamento de1833 das Faculdades de Medicina, sancionadocomoleipela Câmarados Deputados: O ensino da Medicina fica livre; qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, poderá estabelecer cursos particulares sobre os diversos ramos das ciências e acessórias e lecionar à sua vontade, sem oposição alguma da parte das Faculdades.

Esseimportante item da regulamentaçãodoensino médico permaneceu até o final do Império,quando os diplomas ainda traziamimpresso podeis exercer e ensinar livremente a Medicina, tendo contribuído para o aparecimento posterior do professor livre-docente.

A necessidadesentidaparasuperar as graves deficiênciasdoensinoestava assentada emdoisaspectos: o gritante distanciamento da realidade social e aimpossibilidade de os formandos atenderem às exigências dos grupos privilegiados em ascensão,querecebia as notícias dos avanços da Medicinaeditadasnas revistas parisienses.

O primeiro aspecto e o mais grave não obteveresposta,porqueestavaassentadonas necessidadesda maior parte da população, desorganizada nas suas aspiraçõessociais.Restava a este estrato da sociedade procurar salvaguardar a saúde nos agentes da medicina empírica.Contudo, o segundo aspecto damesmaquestão gerou imediatarespostadentroeforada estruturado ensino. Foram organizados vários cursos deespecializaçãodados por ilustres médicos que nãofaziampartedoquadro docente, principalmenterelacionados com as doençasmaiscomuns dos mais abastados.Os cursos eram fartamente divulgadosna imprensaleiga, detalmodoquetodaapopulaçãotomava conhecimento deles e desestimulava os que pretendiam viajarà Europa na procura de melhor assistência médica.

O acesso aos cursos de Medicina tornou-se mais difícil aos pretendentes situados fora de certo padrão socioeconômico. Passaram a ser exigidos os conhecimentos de inglês, francês, português, latim, filosofia, aritmética e geometria. As barreiras aumentavam porque as tarefas do aprendizado ocupavam todo o dia, não sobrando tempo para o aluno ganhar o seu próprio sustento. Não eram muitas as famílias que podiam manter o filho durante seis anos somente estudando. Se for considerado que só havia duas faculdades de Medicina, em Salvador e no Rio de Janeiro, recebendo alunos de todo o país, a despesa com a manutenção aumentava muito. Apenas os filhos dos grandes proprietários de terras, comerciantes ou nobres podiam estudar Medicina, porque eles tinham a exclusiva garantia do sustento.

Nessas condições, a abertura do ensino aos professores sem vínculo com a faculdade foi concretizada sem resistênciadeambas as partes.De um lado, interessavaàadministração compensar as deficiências escolares do aprendizado e, de outro, o corpo discente podia arcar com asdespesas. Só a matrícula desses cursoscustava vinte mil réis e eram oferecidos nosjornaisde maior circulação.As aulas particulares passaram a fazerparte daformação universitária, dadas principalmente pelosestudantes que ocuparam a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Em1834, aFaculdadede Medicina doRiodeJaneiro diplomou os sete primeiros médicos, seisséculos depois da Universidade de Paris.

A convivência entre alunos e professores não foi pacífica.Osatritoscomeçaramcom asdenúnciasfeitaspelos Mordomosda Santa Casa do Rio de Janeiro, quanto às frequentes desordens.Depois de algumas negociações, os estudantesforamaceitossomente nas enfermarias masculinas;os Irmãos da Misericórdianão concordaram em expor a intimidade feminina aos alunos.

Os atritosrepetiram-senos anos seguintes e geraram umregulamentoacadêmico-policialmuitosevero,em 1835,interditandoos alunos de andarem em grupos pelacidade. Areação foiimediata.Osestudantes,junto comaimprensa, conseguiram abrandar a dureza,limitando as medidas disciplinares aointerior das salas de aula.No entanto, foi mantida a punição de trêsmeses deprisão para quem cometesseofensa injuriosa contraqualquer professor.

O climapermaneceutenso easameaçascontinuaram acesasentre as partes.A congregação endureceu nacobrançadas obrigaçõesescolares,introduzindo uma prova escrita eliminatória.Estenovofatomotivou, em 1871, arebeliãodos estudantes pela falta de professores,livros e laboratórios.Novasconfusõessurgiramna convivência universitária com a volta da presença obrigatóriaàs salas deaula. Muitos alunos foram reprovados pelaausênciae reagiram destruindo completamente os poucos laboratórios em 1879.

Apesar de ter havido produção de textos médicos, eram insuficientes às necessidades discentes que continuavam estudando nos livros dos autores franceses, ingleses e alemães.

Enquanto o corpouniversitárionoRio deJaneiro continuavaajustando-se nem sempre pacificamente, aspublicações médicascontinuavam trazendo, de forma contundente,adiscussão maiordas fases de conflitode competência nas práticas de cura entre a Medicina e a religião.

Amesmasituação foi sentida de diferentes formas em váriascidadesbrasileiras, de tal modoque gerourespostas semelhantes:aperseguiçãosistemáticaaos agentes da cura da medicina empírica por parte da medicina oficial. OEstado perseguia meia dúzia dos benzedores mais destacados pelacompetênciaporque disputavam o espaço com os médicos e ignoravadezenas de outros.

A atitude dúbia acabava satisfazendo a todos porque tendia a não modificar a situação: os pobres continuariam organizando a luta pela sobrevivência em torno da medicina empírica e da medicina divina; os mais ricos mantinham a maior facilidade de acesso à Medicina oferecida pelo Estado.

Emalgumasocasiões,odiscurso da medicina oficialtornava-seclaronadisputadoespaço, que acreditava ser exclusivamenteseu;em outras, reconhecia oconflitode competência einvestiaabertamente contraos curadores populares, mesmo sem poderassumircompletamente a responsabilidade de assistência à saúde da população, outras vezes, resolvia assumir completamente a suahistórica relação com a religião, ao mesmo tempo em que tambémidentificavaa perigosa competição com a medicina empírica.

Relembrando que o domínio militar holandês em Pernambuco, no século XVII, possibilitou o encontro de três grupos de atores:

– Médico holandês Guilherme Piso e acompanhantes;

– Médicos formados em Coimbra;

– Pajés.

Piso nasceu em Leyden (Holanda), em 1611, e diplomou-se em Medicina na cidade Caen, na Normandia francesa, em 1633. Chegou ao Brasil em 1637 e ocupou a chefia dos Serviços Médicos das Índias ocidentais. Permaneceu em Pernambuco durante sete anos e nesse período coletou material e realizou inigualáveis observações que culminaram na elaboração dos livros “História Natural e Médica da Índia Ocidental” (Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957). Retornou à Holanda, em 1644, tendo exercido a prática médica, em Amsterdã, até 1678, quando morreu.

Antes da conquista holandesa, a Medicina colonial brasileira estava exclusivamente atrelada às farmácias dos jesuítas. As famosas fórmulas mágicas desses religiosos estavam indicadas para todas as doenças, algumas muito específicas dirigidas ao desespero de certas famílias, como o “cozimento para a virgindade perdida”, do Irmão Boticário Manoel de Carvalho. Por outro lado, a interferência do poder eclesiástico sobre os governadores era tão intensa que, em 1707, D. Sebastião Monteiro ordenou que os poucos médicos da corte não tratassem os doentes que não se confessassem e comungassem.

Com a nova diretriz imposta por Piso foi possível reunir, no hospital do Forte de São Jorge, vários médicos e cirurgiões-barbeiros, alguns judeus fugidos das acusações da contra-reforma promovida pela Igreja na Europa. Entre os atendimentos médicos, Guilherme Piso tomou conhecimento da medicina empírica indígena e, de modo genial, comprovou que ela curava mais que as amputações indicadas pelos cirurgiões-barbeiros.

No seu livro “História Natural do Brasil”descreveu várias doenças infecciosas. No capítulo, “Das lombrigas”, identificou corretamente o Ascaris e oEnterobius vermicularis, dois dos parasitos intestinais mais comuns no Brasil, afirmando que poderiam ser encontrados no estômago, vesícula biliar e coração, caracterizando de forma incontestável que também realizava necropsias, na mesma época em que, na Europa cristianizada, essa prática era absolutamente proibida.

O médico holandês reconheceu, em diversas passagens dos seus livros, a superioridade dos remédios indígenas sobre os prescritos pelos médicos europeus: “Os índios prescindem de laboratórios, a demais, sempre têm a mão sucos verdes e frescos de ervas. Enjeitam os remédios compostos de vários ingredientes, preferem os mais simples”.

Capa do livro de Guilherme Piso História Natural e Médica da Índia Ocidental, Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957)

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REVOLTA À MORTE

João Bosco Botelho, Doutor Honoris causa, Universidade Toulouse III-Paul Sabatier

A necessidade incontrolável de dar sentido à vida e minimizar a morte, expressas com transparências muito antes dos primeiros registros, contribuiu para materializar como opostos, a saúde e a doença. A primeira, sinônimo de vida, ficou ligada ao bem e a segunda, como mal, antecipava a morte temida.

            A pulsão inata para desvendar o invisível, em especial o escondido sob a pele do corpo doente, mas dotado com propriedades sensíveis, para fugir da dor e do desconforto, pode ser considerada como a primeira verdade estrutural no processo de empurrar os limites da morte. É verdadeira em si mesma, porque dá forma à vida, composta pela carnalidade da pele quente, a realidade dos sentidos, a respiração e do ritmo cardíaco.

Atinge e entrelaça o ser no mundo.

            De modo geral, as descobertas surgem das repetições, contudo, mas sem entendermos completamente a multiplicidade das formas visíveis, na realidade, tanto do múltiplo qualitativo quanto quantitativo. O confronto das ideias, no diverso incontornável, na maior parte das vezes, incompreensível, é suficiente para moldar o pensamento que transforma e consolida a consciência-de-si corporal.

            O conjunto sociocultural, presente nas memórias sociogenéticas*, adquiridas, transformadas e transmitidas, geração após geração, é fundamental às mentalidades. Os atuais saberes ocidentais, em parte marcados pela influência cultural greco-romana[1], uniram e solidificaram esse patrimônio, nos enigmáticos neurônios da memória de longa duração.

*BOTELHO, JB. O deus genético. Manaus. Editora Universidade Federal do Amazonas. 2000. p. 11-146.

A proposta teórica das memórias sociogenéticas, interligando o meio vivido e as emoções sentidas e expressas à epigenética capaz de produzir mudanças no genoma, está indicando as novas fronteiras do pensamento geneticista.

A pólis, organizada à semelhança do corpo saudável, passou a ser compreendida como saúde. O contrário, o caos social, sinônimo de doença. Junto, a concepção do administrador competente se consolidou como curador da sociedade doente.

No mundo mágico, a passagem de um para o outro lado, da saúde à doença, envolvendo mudanças nas coisas e nos acontecimentos, implicando riscos à vida, funcionando como polos opostos, tem sido comunicada às pessoas pelos representantes das divindades (curadores de todos os matizes)[2], o representante da divindade. Apesar de não negar o conhecimento empírico da natureza circundante, confessa ser incapaz de compreender a vontade divina, limitando-se a obedecer e implorar a misericórdia, através dos ritos específicos para abrandar a ira transcendente.

            O poder de curar pessoas e sociedades e adivinhar os infortúnios e a desagregação social, para melhor organizar o grupo social[3], oferecendo a saúde e adiando a morte, tem sido historicamente utilizado pelo poder político, como mecanismo de coesão e dissolução sociais.

            O sofrer e a morte da pessoa amada determinam transtornos complicados, em diferentes níveis do corpo, trazendo incontáveis sinais físicos de desconforto, variando em cada pessoa. Os sistemas nervosos, central e periférico, liberam substâncias que alteram o ritmo biológico e estabelecem a baixa global da defesa imunológica inata.

            A ansiedade frente ao medo da morte, entendida como sensação de perigo iminente, interferindo na sociabilidade do ser-tempo, provoca complexas mudanças nos ciclos do sono, da fome, da sede, da libido e da afeição, nada compreendidas, na neurotransmissão do axônio celular.

            O lento avançar da medicina molecular identificou a substância conhecida como GABA (ácido gama-aminobutírico), como o principal neurotransmissor, inibitório do sistema nervoso central[4].

            A maior parte dos bilhões de trocas químicas específicas processadas, em cada instante, nos tecidos, estão voltadas para manter o ser vivo e embotar, temporária ou perenemente, as sensações desagradáveis e perturbadoras.

            Parece lógico supor que as atitudes específicas, usadas no enfrentamento da adversidade temida, minorando o sofrimento do homem e da mulher, tenham sido valorizadas e, continuamente, aperfeiçoadas pela ordem social, por trazerem resposta de bem-estar.

            As ações humanas, transformando a natureza, para atenuar o desconforto, são imperativas. Estão ligadas direta e indiretamente aos mecanismos neuroquímicos endógenos autorreguláveis.

            Os dois atos, o externo, no circundante, e o interno, na célula, ajudam o corpo a criar mecanismos defensivos, quando o nível de agressão passa dos limites suportáveis.

            As dores, física e mental, determinadas pela ferida, na carne dilacerada no acidente traumático ou na morte da mulher amada, como pagamento e castigo, são sempre temidas. Têm sido, ao mesmo tempo, a inspiração dos poetas e a arma preferida da insanidade para aqueles que exigem o apagar dos sentidos, a fim de limitar, pelo pavor, o confronto das ideias no exercício da livre consciência.

            Diversas circunstâncias, do homem chorando a perda do amor ao suplício do torturado pelas ditaduras da direita e da esquerda, determinam o alerta dos sentidos e modificações significativas em todos os órgãos, em níveis moleculares, hoje inacessíveis.

            Uma das características mais intrigantes é como a dor altera a noção do tempo. Suportar o desconforto doloroso, por um minuto, é sofrer na imensidão do infinito. Durante a manipulação dentária, quando a pequena broca alcança o nervo sensitivo, as sensações cerebrais são indescritíveis. Ao contrário, a hora de prazer se concretiza em breve instante.

            Por essa razão, é impossível manter, durante muito tempo, a algia fulgurante. De pronto, todos os sentidos natos atiçam para evitá-la

ou os sentidos são apagados, pela inconsciência forçada, para aliviar o desastre biológico.

            Qualquer pessoa, capaz de interromper o sofrimento, é identificada na MSG, com o mais poderoso elemento da ficção na defesa contra o perigo: a divindade.

            Por outro lado, quando a vítima da tortura associa, de maneira persistente, alguém ao suplício da dor, a lembrança do algoz faz a ansiedade alcançar nível difícil de suportar[5]. A morte, antecipada pelo suicídio, pode significar a única saída.

            As reações corpóreas de todos os animais precisam dessas defesas, para continuar vivendo e reproduzindo.

            A espécie humana elabora uma substância específica, endo morfina (morfina produzida no corpo humano) auto requisitada pelas trocas biológicas, independentes da vontade, para modular a dor[6].

            Existem moléculas especiais, acopladas às membranas celulares, no sistema nervoso central, dotadas de especial receptividade aos derivados opiáceos naturais, utilizados como alucinógeno e analgésico.

            A incrível disseminação das drogas proibidas também não é um problema social exclusivo. A sedução exercida pelo consumo ilegal é diferente em cada pessoa. Está contida na individualidade material molecular e é transmitida geneticamente. Não é possível tantas pessoas, espalhadas no mundo, algumas coagidas por métodos brutais, continuarem desafiando, com acinte, o controle social, sem uma coerência biológica.

            As investigações realizadas nos símios responderam, favoravelmente, a essa assertiva. Os animais produzem substâncias, a nível molecular, para atenuar todas as circunstâncias exteriores e interiores capazes de determinar a dor.

            O mundo que envolve e forma a coisa sagrada ajusta a sua sedução, na eficiência simbólica dos ritos, da linguagem e da prece, unindo, em atitude mágica de credulidade, num só corpo, o pedinte e o objeto sagrado.

            A fé no renascimento foi atiçada nas incontáveis dúvidas da vida, no medo das intempéries incontroláveis, na dor no braço destruído nos acidentes e na agonia da morte. Seguiu caminho, alimentada na disputa da sobrevivência e do controle social, executada pelos detentores dos mais adequados artefatos de força.

            A maior parte da comunicação religiosa acabou sendo feita sobre a regra binária do prêmio-castigo, onde a divindade principal recompensava os obedientes com a bonança e punia os faltosos com a dor eterna na vida após a morte.

            O aliado que curasse a doença e previsse os infortúnios, representava o deus dominante. Ao contrário, quem não ditasse a mensagem, mesmo que sarasse e adivinhasse com a mesma competência, era identificado como antidivindade e proibido de entrar no éden.

            A certeza ficou transparente, a partir da melhor compreensão da escrita cuneiforme das tábuas de argila, encontradas nos sítios arqueológicos, assírios e babilônicos. Ficou esclarecido o intrigante sinônimo das palavras sortilégio, malefício, pecado, doença e sofrimento. De igual modo, o sacerdote, o médico, o adivinho e o escriba receberam o mesmo nome.

            Os registros também mostraram parte da prática médica, no escravismo da Mesopotâmia antiga. Os médicos eram regidos com legislação específica, voltada para punir os erros e premiar, com recompensa pecuniária, os acertos. Utilizaram, com fartura, o saber empírico[7], para empregar os recursos disponíveis no meio ambiente.

            É possível evidenciar que os sacerdotes, intermediários da vontade divina, e os curadores, em muitos contextos históricos diferentes, exerceram, simultaneamente, a mesma função. Por essa razão, os tratados divinatórios e os prognósticos médicos estão ligados desde o início.

            A crença no renascimento após a morte continua sendo um dos mais valorosos artifícios da ficção, para atenuar a morte rejeitada.

            As práticas religiosas valorizadoras dos mortos e as que os reintegram ao mundo dos vivos, exercem fascínio irresistível. As manifestações estéticas, em todos os tempos, apesar das metamorfoses sofridas, repetem, sem cessar, a sedução do renascer.

            A morte rejeitada, processada durante a humanização, arquivada nas memórias sociogenéticas, foi e é utilizada, com muita competência, tanto na dominação quanto na resistência como meio moldador das mentalidades ao movimento social.


[1] Sólon, sob a influência jônica associou as crises políticas como doenças. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 1986. P .689;

Platão utilizou, notadamente em Górgias (464 B, 465 A e 501 A), a arte médica como modelo.

A ética aristotélica valorizou o equilíbrio das emoções contidas entre a o prazer e a dor.

ARISTOTE. Éthique à Nicomaque.  Paris. Librairie Philosophique J. Vrin, 1990. p. 102-6.

BARBOSA, Marcos, dom. Aids, um castigo? Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 12 dez. 91: “A família, primeira instituição criada por Deus e que seu Filho quis restaurar com o primeiro milagre, é uma decorrência da natureza social do homem. E os responsáveis pela sua destruição devem ser punidos por Deus.”

[2]Sólon, sob a influência jônica, associou as crises políticas como doenças. Ver:

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo, Martins Fontes, 1986. p. 689;

Platão utilizou, notadamente em Górgias (464 B, 465 A e 501 A), a arte médica como modelo;

A ética aristotélica valorizou o equilíbrio das emoções contidas entre a o prazer e a dor. Ver:

ARISTOTE. Éthique à Nicomaque. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1990. p. 102-6;

BARBOSA, Marcos, dom. Aids, um castigo? Jornal do Brasil. Rio de Janeiro. 12 dez. 91: “A família, primeira instituição criada por Deus e que seu Filho quis restaurar com o primeiro milagre, é uma decorrência da natureza social do homem. E os responsáveis pela sua destruição devem ser punidos por Deus.”

[3] Eclo 38,1;

HOMERO. Ilíada. São Paulo. Melhoramentos. s/d. p. 44-5;

BARBOSA, Marcos, dom. Sinais dos tempos. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19 dez. 1991: “Também se me perguntam por quê, tratando-se de um castigo, Deus não puniu antes outras épocas em que desordem moral clamou igualmente aos céus, responderia que não sou capaz de saber por que Deus deixou de fazer isto ou aquilo, mas de procurar humildemente compreender por que fez o que faz… A punição divina visa corrigir os que erram…”;

O LIVRO dos mortos do antigo Egito. Lisboa. Assíro & Alvim. 1991. p .27: “Salve ó tu, Amon-Ré…, por N. …o mais importante no céu, o mais antigo na terra, o senhor daquilo que existe, que estabelece duravelmente todas as coisas!”

[4] COSTA, Terezinha. Medo precisa ser tratado para se curar os doentes. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 13 nov. 1986;

ROITT, M. Ivan; BROSTOFF, Jonathan e MALE, David, K. Imunologia. São Paulo, Manole. 1989;

REIS, José. Estresse altera sistema imunológico. Folha de São Paulo. São Paulo, 17 dez. 1989;

______. Sistema imune e nervoso se ligam. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 nov. 1989;

GRAEFF, Frederico G, Ansiedade: uma perspectiva biológica. Ciência Hoje. Rio de Janeiro, 1985. v. 4. n. 20. set./out. 1985. p. 67-72.

[5] PETERS, Edward. Tortura: uma visão sistemática do fenômeno da tortura em diferentes sociedades e momentos da História. São Paulo, Ática, 1989. p. 94;

FREI BETTO. Batismo de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. 6. ed. Rio de Janeiro, 1983. p. 254;

SOLJENITSIN, Alexandre. Arquipélago Gulap. Lisboa. Círculo do Livro. 1975. p. 111-124.

[6] LICO, Maria Carmela. Modulação da dor: mecanismos analgésicos endógenos. Ciência Hoje. v. 4, n. 21, nov./dez. 1985. p. 69.  

[7] VERNANT, Jean-Pierre. Parole et signes muets. In: Divination et rationalité. Paris. Seuil. 1974. p. 18-9;

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