A teoria dos Quatro Humores, construída no século 4 a.C. por Políbio, médico da Escola de Cós e genro de Hipócrates, e a proposição de Galeno, no século 2 d.C., associando o perfil social como fator nato preexistente ao apa-recimento das doenças — teoria dos Quatro Temperamentos —, se tornaram dogmas quase religiosos, certamente influenciado pelo fato de Galeno ter se declarado cristão, e ampliaram os limites da cura além do social, durante quase vinte séculos.
Por outro lado, a inovação de Galeno não modificou a essência da pratica médica de Cós, liderada por Hipócrates: o exame do doente por meio da anamnese, assim descrita em homenagem à deusa da recordação Mnemis. Assim, o médico próximo do doente o interrogava na busca dos fatores pessoais, familiares e sociais que poderiam estar relacionados com aos sinais e sintomas da doença.
Com absoluto predomínio das teorias hipocrático-galênicas, a Medicina atravessou a baixa Idade Média. Com pouca resistência se adaptou às intole-râncias cristãs e assim chegou às primeiras universidades, sob forte influência do poder romano. No período mais tenebroso na Inquisição, entre os séculos 14 e 15, alguns médicos ensaiaram teorias para identificar mais facilmente as bruxas.
O avanço seguinte ocorreu com a micrologia genialmente descrita por Marcelo Malpighi, no século 17, que pouco a pouco, na medida no aperfeiçoamento do pensamento micrológico celular, obrigou a revisão da ordem hipocrático-galênica.
A partir da segunda metade do século passado, a Medicina oficial continuou transmitindo, como verdade final, a morfologia das doenças, desprezando como e por que as pessoas se relacionam com as dores e os prazeres.
Apesar da associação saúde-sociedade não ser recente na história da Medicina, nunca se tornou tão obrigatória nos trabalhos acadêmicos, quanto nos últimos cinquenta anos. Notadamente nos países do Terceiro Mundo, onde a exclusão social é mais gritante, escrever ou orientar teses médicas desprovida do suporte metodológico em torno da doença como fruto do social acabou sendo proibido.
Admitir como pressuposto que a doença só depende da ordem social, remete o raciocínio, de maneira obrigatória, à falsa premissa da ausência de vetores pessoais que interferem com a etiologia das doenças. A herança genética que molda os corpos dos animais multicelulares foi estruturada, em milhões de anos, para fugir das dores de todos os tipos, física e mental, e buscar o prazer como resposta inata contra o sofrimento. A vida é impossível sem a distensão entre a dor e o prazer.
Ao contrário, os sentimentos pessoais e coletivos determinados pelas dores sentidas por cada uma das pessoas, podem induzir ao juízo de valor do tipo da organização social, ou seja, os circuitos biológicos identificadores da dor e do prazer pessoais e coletivos, estão embutidos em processos muito mais densos e pouco compreendidos.
Apesar de a Medicina oficial ter feito progresso no trato da saúde coletiva, retirando-a do espaço fechado da classificação nosológica, é saudável insistir que prevalecem, nas academias, as correntes que colocam a doença como um produto exclusivo da organização social.
Nesse sentido, a principal proposta teórica, na modernidade, que associou a doença à desordem social e à dor (por corruptela ao capitalismo, como o agente do caos) e o normal à ordem social como agente do prazer (por corruptela ao não-capitalismo), se fortaleceu a partir da descrição das condições de trabalho e da saúde dos operários ingleses (ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro. Global, 1986).
A tendência de associar a doença à desorganização das sociedades é bem mais antiga. Na Grécia, nos tempos de Sólon, estava estabelecida (JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo. Martins Fontes. 1986):
As sementes intelectuais da estranha concepção linear da dor e do prazer se reconstruíram, no século 16, interligando nos meios acadêmicos, e trazendo a máquina como o modelo ideal para ser comparado ao corpo humano. Nesse caso, os corpos, como num passe de mágica, passaram a ser comparados aos relógios e as doenças, desajustes na engrenagem.
A leitura mecanicista dos corpos serviu para fundamentar uma das mais conhecidas tentativas para explicar a diferença entre o homem, possuidor de alma, e os outros animais, feita pelo médico espanhol Gomes Pereira, em 1554, ao afirmar que os animais são máquinas, incapazes de falar e raciocinar. O peso decisivo para alavancar essas idéias recaiu no filósofo francês René Descartes (1596-1650), ao reforçar a corrente mecanicista, defendendo o corpo como o domínio da física e a alma, da religião.