Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 9/11

Linguagens-culturas construindo e desconstruindo ritos de curas e práticas médicas – 9/11

Prof.Dr.HC João Bosco Botelho

Microscópios e micróbios

Contudo, como não poderia deixar de ser, a genialidade de Marcelo Malpighi estava em sintonia com algumas variáveis importantes, presentes no século 17. Além do estímulo coletivo de busca da materialidade da doença, que contagiou a Europa, os novos estudos da óptica foram fundamentais para que pudessem ser montados os microscópios mais potentes.

O depoimento de Malpighi ao utilizar as lentes de aumento trouxe à materialidade e ao visível outro mundo inimaginável: “O aparelho é fixado num círculo, móvel na base; para ver tudo é preciso girá-lo, num só golpe de olhos, pode-se ver apenas uma pequena parte do conjunto… Para observar objetos muito grandes é preciso poder distanciar e aproximar as lentes e isso é possível graças à mobilidade do aparelho.. Deve ser usado com um ar sereno e límpido, sendo melhor utilizável ao sol, para que o objeto seja bem iluminado. Contemplei inúmeros animais pequenos com admiração infinita: entre eles a pulga é horrível, o mosquito e a traça os mais belos e foi com grande contentamento como fazem a mosca e outros pequenos animais para caminhar”.

O conjunto das novas observações consequentes da utilização do microscópio foi tão grande e em espaço de tempo tão pequeno, que se formaram inúmeras associações científicas, onde eram comunicadas e discutidas as descobertas da microestrutura do corpo humano. Uma das aplicações imediatas das novas observações foi a identificação do ácaro como agente causador da sarna. Esta doença da pele já era conhecida desde os tempos bíblicos e foi incluída entre as oito doenças aceitas como contagiosas. A identificação do ácaro foi a primeira prova de que o microorganismo podia ser a causa de uma doença.

Foi a partir dessa nova concepção da realidade que a teoria atomista de Demócrito foi resgatada. Ela fora abandonada pela força da Teoria dos Quatro Humores gerada na Escola Médica de Cós. O conceito atomista da realidade foi retomado para explicar os fenômenos fisiológicos. Por outro lado, o modo como os médicos do século 17 se relacionavam com os doentes passou a ser questionado. A frieza com que a concepção mecanicista de vida impunha, determinava a simplificação das funções vitais a simples acontecimentos mecânicos. Os médicos passaram a se contentar com a descrição dos sintomas a distância. A partir dos dados obtidos de maneira indireta, estabeleciam o diagnóstico e o tratamento.

A crítica mais contundente da Medicina mecanicista foi fortalecida com as publicações de Thomas Sydenham (1624-1689). Esse genial autor trabalhou os últimos anos da vida tentando demonstrar que o ponto fundamental da Medicina era a presença do médico na cabeceira do doente, utilizando os recursos que pudessem auxiliar na cura.

O convencimento da utilidade do pensamento micrológico na busca da materialidade da doença alcançou o século 19. Nessa esteira, se tornou magistral o esforço de muitos médicos, especialmente de quatro entre eles, que se imortalizaram por terem evitado a morte e a dor de incontáveis doentes:

– Louis Pasteur (1822-1895)

O monumental trabalho de Pasteur tomou maior dimensão, em 1877, em torno dos estudos sobre a fermentação; em seguida, divulgou o método que ficaria conhecido como “pasteurizacão”, para conservar o vinho e o leite. De modo definitivo, acabou com a teoria da geração espontânea, defendida durante a Idade Média, que preconizava ser possível a vida surgir do ar, ao demonstrar que a cólera das galinhas era contagiosa e provocada por bactéria. Mesmo com a clareza dos argumentos, enfrentou ferozes inimigos que insistiam em negar a relação entre as bactérias com as doenças infecciosas. Entre os relevantes trabalhos de Pasteur, é possível destacar: identificação do estafilococo no furúnculo e na osteomielite (infecção no osso); identificação do estreptococo na febre puerperal (infecção pós-parto que matou milhões de mulheres); introduziu o termo vacinação; realizou a primeira vacinação antirrábica, em 6 de julho de 1885, numa criança de 9 anos de idade que tinha sido mordida por cão raivoso; introduziu a assepsia e antissepsia com famosa frase: “Se eu tivesse a honra de ser cirurgião, sempre lavaria as mãos com muito rigor e as exporia, rapidamente, ao calor, e só usaria instrumentos limpos previamente submetidos à temperatura entre 130 e 150 graus, e água tratada até 110 graus”.

– Robert Koch (1843-1910)

Esse notável médico alemão introduziu os meios de cultura capazes de fazer crescer, no laboratório, a maior parte das bactérias causadoras de doenças. Entre a enorme contribuição à humanidade, destacaram-se: definitiva comprovação de que cada doença infecciosa é causada por bactéria específica; isolamento, em 1882, do bacilo da tuberculose; identificação, em 1884, do vibrião da cólera.

– Alexandre Yersin (1863-1943)

Durante a epidemia, em Hong Kong, em 1894, esse médico suíço identificou o bacilo da peste e o papel do rato na transmissão da doença, contudo não associou a pulga como o elemento contagiante.

– Gehard Hansen (1841-1912)

Identificou o bacilo da lepra (Mycobacterium leprae), em 1873, a partir de preparações frescas e não coradas.

Além desses pilares da infectologia, apoiada busca da materialidade da doença, outros também se imortalizaram na identificação das causas de muitas doenças que causaram morte e dor durante milhares de anos:

– Febre tifóide:

a. Carol Eberth (1835-1926), em 1880, identificou o bacilo que recebeu o seu nome;

b. Émile Achar e Raoul Bensaude, em 1896, descrevem o paratifo.

– Tétano: identificado, em 1884, por Arthur Nicolaïer (1862-1921);

– Colibacilo: em 1885, por Theodor Escherich (1857-1911);

– Meningococo: em 1887, por Anton Weichselbaum (1845-1920);

– Cancro, em 1889, por Auguto Ducrey (1860-1940).

Ao lado desse incalculável avanço no diagnóstico micrológico, traduzindo a importância social do segundo corte epistemológico da Medicina, a cirurgia também obteve grande melhoria. Mesmo com os cuidados da assepsia e antissepsia preconizadas por Pasteur, incontáveis doentes morreram em consequência das complicações decorrentes das infecções no pós-operatório. O cirurgião deveria ser muito rápido e evitar as cavidades abdominais e torácicas pela possibilidade de as infecções pós-operatórias tornarem-se mortais.

Ainda com a resistência de muitos que ainda não acreditavam nos cuidados da assepsia e antissepsia, a maior parte dos cirurgiões, em pouco tempo, passaram a usar: máscaras cirúrgicas, luvas de borracha esterilizadas após cada cirurgia, proposta por Halsted, em 1889; esterilização sistemática e rigorosa dos instrumentos cirúrgicos; isolamento das salas de cirurgia e proibição de circulação de pessoal não autorizado; uso do ácido fênico para esterilizar o instrumental cirúrgico, introduzido por Joseph Lister (1827-1912), em 1867; lavagem permanente das áreas expostas pela cirurgia, durante o ato operatório, com compressas embebidas com ácido fênico, por Stéphane

Tarnier (1828-1897) e Just Lucas Championnière (1843-1913); lavagem obrigatória das mãos do pessoal médico e auxiliar com solução de cloreto de cálcio antes de qualquer manuseio genital no após parto. Somente com escovagem das mãos, o médico Ignace Semmelweis (1818-1865), numa maternidade em Viena, conseguiu reduzir a mortalidade de 27% para 0, 23%.

O deslumbramento das práticas médicas com a microestrutura como único caminho para a completa materialização das etiologias das doenças durou na justa medida da chegada do pensamento molecular.

Sobre João Bosco Botelho

Retired professor, Federal University of Amazonas and State University of Amazonas. Professeur à la retraite, Université Fédérale d'Amazonas et Université d'État d'Amazonas
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